Não há como negar: tempos difíceis exigem medidas extremas, que nem sequer seriam cogitadas em épocas de normalidade institucional e econômica. Exigem, ainda, boa vontade e sensibilidade de nossos representantes políticos, que não podem se omitir diante das dificuldades de seu povo. Tempos difíceis, porém, não justificam o vilipêndio à ordem constitucional estabelecida, por melhores que sejam as intenções envolvidas.
É exatamente sobre isso que estamos a tratar quando analisamos os recentes projetos de lei estaduais e federais que obrigam instituições particulares de ensino a reduzirem o valor das mensalidades escolares durante o período de calamidade pública. Em matéria publicada no dia 3 de abril, a Gazeta do Povo noticiou que deputados estaduais de ao menos cinco unidades federativas (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Pernambuco e Paraná) apresentaram projetos de lei que impõem às instituições privadas de ensino, pela “canetada”, a redução obrigatória do valor das mensalidades escolares. Nos estados de São Paulo e Espírito Santo também existem projetos de lei no mesmo sentido. Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal há outros PLs com teor semelhante, determinando a redução obrigatória das mensalidades entre 30% e 50%.
É evidente a boa intenção dos legisladores ao estabelecer uma regra como essa: em um momento de redução abruta do poder aquisitivo das famílias, nada mais “coerente” do que reduzir um dos principais componentes do orçamento familiar – as mensalidades escolares. O problema é que no meio do caminho existe uma pedra, e das grandes: a Constituição Federal de 1988.
Inicialmente, cumpre destacar que as questões relacionadas à determinação do componente “preço” das relações jurídicas estabelecidas entre o particular e a instituição de ensino se revestem de evidente natureza de Direito Civil, notadamente de direito obrigacional ou contratual. Dessa forma, a competência para criar leis sobre mensalidades ou anuidades escolares é privativa da União Federal, nos termos do artigo 22, I, da Constituição Federal. Já há, inclusive, legislação federal regulando o valor total das mensalidades ou anuidades: a Lei Federal 9.870/1999.
Melhor dizendo: apenas o Congresso Nacional teria competência para editar lei que trate dos impactos nas mensalidades escolares provocados pela pandemia, sendo flagrantemente inconstitucionais todos os projetos de lei estadual neste sentido. Este entendimento já foi adotado e reforçado em dois julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, nas ADIs 1042 e 1007. Assim, caso aprovadas, as leis estaduais podem ter sua inconstitucionalidade reconhecida pelo STF, causando ainda mais insegurança jurídica e instabilidade econômica.
Ainda que superada essa questão, entendemos que mesmo uma lei editada pelo Congresso Nacional não encontraria respaldo na ordem constitucional, por quatro razões. Primeiro, porque não há qualquer autorização constitucional para que o Estado atue diretamente na determinação e imposição de preços praticados no âmbito de relações privadas, especialmente considerando o teor do artigo 174 da Constituição Federal, que é claro ao determinar que o Estado apenas pode exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento indicativos ao setor privado, respeitando especialmente a livre iniciativa; segundo, porque não faz sentido econômico ou jurídico qualquer tipo de distorção horizontal e genérica aplicada a um setor inteiro da economia, sem que se considerem as particularidades em termos de formação de custo de cada integrante do mercado – inexistindo, ainda, qualquer estudo sério a respeito dos reais efeitos econômicos da pandemia no setor da educação (e seu respectivo impacto na determinação do preço das mensalidades escolares).
Além disso, é indesejável a intervenção impositiva do Estado na formação de preços de um único setor da economia, não havendo qualquer justificativa razoável para que o setor de educação seja escolhido em detrimento de outros de caráter também fundamental (combustíveis, energia elétrica etc.). Por fim, a imposição por lei da redução dos preços praticados nos contratos pode violar o ato jurídico perfeito, uma vez que as obrigações firmadas entre particulares e instituições de ensino já foram pactuadas de forma válida e em plena observância à legislação de regência (o Código Civil e a Lei Federal 9.870/1999).
Como é possível perceber, há graves problemas jurídicos na determinação impositiva e genérica da redução dos valores de mensalidades escolares por meio de lei – federal ou estadual. A referida conclusão, porém, não torna inviável a renegociação das obrigações assumidas diretamente entre os contratantes, com base na já consolidada Teoria da Imprevisão do Direito Civil. Essa, inclusive, é a orientação geral do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, prevista na Nota Técnica 14/2020, veiculada pela entidade em 26 de março.
É preciso considerar, neste contexto, que as instituições de ensino também passam por diversos problemas econômicos, uma vez que, em geral, mantiveram a prestação dos serviços educacionais por meio de tecnologias digitais sem, contudo, obterem a redução da maioria de seus custos operacionais (salários, tributos, materiais, custos de manutenção etc.).
Os tempos difíceis chegaram; soluções simples e impositivas que desconsiderem a ordem constitucional provavelmente causarão mais distorção no setor privado de educação, com grave risco sistêmico para o futuro. A solução para o atual momento de crise, portanto, deve ser encontrada em conjunto, entre os próprios particulares ou entre estes e o poder público, com cautela e razoabilidade.
Gustavo Henrique Sperandio Roxo é advogado, mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário e professor universitário. Guilherme Henrique Corrêa Fontoura é advogado.
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