Nos últimos anos, o Congresso Nacional do MBL tem se consolidado como um dos eventos políticos mais importantes do país. Nas edições passadas, o foco foi abrir um fórum de discussão aberta sobre o país com a presença majoritária de personalidades políticas e intelectuais de fora do MBL. Em 2024, porém, o foco foi aprofundar a identidade do Movimento, celebrar as conquistas eleitorais e, sobretudo, consolidar os princípios ideológicos e metas práticas do vindouro Partido Missão (cujo mascote é uma onça, talvez para contrastar com a passividade tucana), previsto para registro no TSE em 2025.
O Movimento Brasil Livre surgiu em meio à efervescência política despertada pela explosão de junho de 2013, os maiores protestos da história brasileira até então. Embora convocados pela extrema-esquerda de São Paulo, as manifestações foram logo tomadas por uma forte insatisfação antipetista, que se espalhou pela sociedade e fez a aprovação da presidente despencar 27 pontos em três semanas para apenas 30% de "ótimo" ou "bom" – e desse patamar jamais se recuperou.
As primeiras lideranças do MBL receberam a influência, a partir do fim da década de 2000, da atuação dos Institutos Liberais (Instituto Liberal, Instituto Milenium, Instituto Mises Brasil, Fórum da Liberdade etc), do escritor Olavo de Carvalho (um dos únicos a ventilar ideias e autores conservadores no mainstream após a morte de Paulo Francis) e do jornalista Reinaldo Azevedo (inventor do termo petralha, cujo blog foi a nave-mãe do antipetismo por anos). Renan Santos, presidente desde a fundação do MBL, esteve presente no mítico debate entre Olavo e Alaôr Caffé na SanFran, em 2003, um episódio precursor da gênese da Nova Direita. A defesa das privatizações, da desoneração da atividade produtiva, da flexibilização trabalhista, do endurecimento penal, das liberdades individuais e contra os privilégios do setor público foram bandeiras fortemente defendidas pelo Movimento Brasil Livre desde o começo.
O ambiente azul-claro e lúdico do orkut foi o terreno no qual a Nova Direita se agregou por permitir, pela primeira vez, o contato entre pessoas dispersas geograficamente e sem filiação institucional, mas com pensamento convergente. Era uma nova forma de associação política entre os indivíduos distinta dos ambientes do sindicato, da igreja e da universidade, mais controláveis e previsíveis, onde as redes ideológicas tradicionalmente se formavam. O modo direto e espontâneo dos contatos estabelecidos no ambiente virtual contrastava com o estranhamento que a esquerda, então no poder, estabeleceu em relação às classes médias após se encastelar nas altas torres do Planalto, das cátedras e das redações. Enquanto ao mundo oficial o segundo governo Lula parecia uma quase unanimidade de aprovação, a comunidade “Fora Lula” do Orkut tinha milhões de membros e uma longa lista de artigos de Olavo de Carvalho na sua descrição. Era o rugido surdo dos “deploráveis” já rondando a cidade. Uma década antes do tema da “crise da representatividade” virar moda, sua solução já estava sendo discretamente urdida entre aqueles que, para o mainstream, nem existiam.
Outra tarefa para o Partido Missão, ainda mais fragosa, é propor eficazmente uma nova imaginação política para essa geração, uma nova imaginação das possibilidades de associação em torno de ideais, das possibilidades de ação
Os principais fundadores do MBL foram Renan Santos (nascido em 1984, atuou como oposicionista à direita no movimento estudantil da SanFran, nas eleições de 2014 estrelara o hit Raio Privatizador), Kim Kataguiri (nascido em 1996, filho de metalúrgico e youtuber desde os 14 anos) e Rubinho Nunes (nascido em 1988, ex-MBL e vereador reeleito de São Paulo).
Publicamente e segundo sua história oficial, o MBL nasceu na manifestação de 1 de novembro de 2014, em São Paulo, convocada em protesto contra a tentativa de invasão da editora Abril por milícias de extrema-esquerda, pouco antes do segundo turno eleitoral, indignadas com a edição da revista Veja sobre o petrolão com Lula e Dilma na capa e o título “Eles sabiam de tudo” (um ano depois, Reinaldo Azevedo publicou um belo texto celebrando aquela data de parto do Movimento). Duas semanas depois, veio mais uma manifestação pelo MBL e outros pequenos grupos antipetistas, na qual eu estive presente, quando o tema do impeachment voltou a ser proposto e, pela primeira vez na minha vida, vi oradores sobre um caminhão de som atacarem o sistema político-cultural progressista, defenderem (contra) valores conservadores e pregarem a urgência de uma regeneração da alma nacional. A nova contracultura já estava em via pública.
Desde o começo, o MBL buscou enfatizar sua marca de cores neutras e letras gigantes em todos os vídeos e manifestações. Aos poucos, foi construindo sua identidade, única no Brasil, de movimento jovem, sem padrinho nem aliados próximos, suprapartidário, antifrágil, desinteressado do regime militar vivido por nossos pais, aposta de ser cool no circo da política brasileira numa mistura de startup digital e banda de rock indie com toques cyberpunk. Nos últimos anos, é notável um esforço de diálogo com a geração Z, bem mais nichada, deslocada dos temas tradicionais de debate público, que, à direita, passeia por bolhas masculinistas, antifeministas, antissistema, jordanpetersonistas, neoestoicistas, façaseuprimeiromilhãoistas, senhordosaneisistas e de restauracionismos vários (“make qualquer coisa que eu gosto great again”). Foi-se o tempo de um discurso antiesquerdista genérico para tios cansados da classe média, agora o Movimento precisa apenas da intensidade dos mais jovens e disponíveis. E o novo Partido Missão deve ficar atento a isso.
Desde o fim da primeira grande guerra que uma geração não é tão sensível ao ideal disruptivo de uma "revolução conservadora" como a geração atual (masculina, sobretudo). É a revolta do subsolo dos gigachads: a volta triunfal de Trump e o sucesso de Milei e Meloni estão aí para chocar a Globonews… E qual a atitude do MBL a respeito da "guerra contra os meninos", do "deep state", do "globalismo pós-humanista", do “make your bed”, dos “dramas da geração Z” (o título do primeiro painel do Congresso deste ano)? Parece-me ser a de um irmão mais velho que deseja falar de igual com o irmão mais novo: entende e quer entender seus problemas e dores, mas não compra de pronto suas soluções simplistas e ingenuamente disruptivas. É patente que o MBL não está interessado em ser mais um a proclamar o fim da civilização ocidental nem se permite sonhar com restaurações mágicas de Roma a partir das ruínas e cinzas.
Como nos tempos do impeachment, o Movimento hoje demonstra maturidade ao reconhecer que a melhor posição para um verdadeiro reformista é contra o sistema, dentro do sistema e usando todas as brechas do sistema, tudo ao mesmo tempo e indissociavelmente. É uma lição que o velho Olavo repetiu mil vezes antes de, infelizmente, embarcar em sonhos de insurreição popular:
“Repito pela bilionésima vez: Tomar as redações de jornais e canais de TV, as universidades, as igrejas, as sociedades de bairros, os sindicatos e outras organizações da sociedade civil é MUITO mais decisivo do que invadir a Câmara ou botar o Lula na cadeia. A esperança de resolver tudo de repente por um golpe espetacular é sinal de fraqueza. Sem um longo "trabalho de base", como o chamam os comunistas, nem as Forças Armadas em peso podem levar este país a dias melhores sem o risco de um retorno cruel à desordem e à roubalheira. O regime de 1964 já nos deu a prova disso.”
Estar dentro do sistema como corpo estranho, coeso e determinado, explorando da melhor forma suas vias e atalhos, é a única forma de implodi-lo em definitivo para o que o Brasil, afinal, tenha vida nova. É a via para realizar o ideal da Nova Direita de “Menos Brasília, Mais Brasil”.
A entrada do Movimento no centro da cena política veio com o protesto pró-impeachment de 15 de março de 2015, que se tornou o maior da história brasileira ao superar 2013. Seguiu-se a esse dia um período heróico e glorioso para o Movimento, as letras MBL figuravam quase diariamente nas manchetes e até os ataques, do PT, da Gleisi, do MTST e demais seres caricatos, se convertiam diretamente em ganhos exponenciais. Essa parte da história já foi cantada em verso & prosa e não precisa ser aqui repetida. Após o impeachment (2016), o Movimento passou a se concentrar em pautas mais concretas, como a reforma da Previdência (2017), a reforma trabalhista (2017), a eleição de membros para o Legislativo (alcançada com Fernando Holiday em 2016 e Kim Kataguiri em 2018), o apoio às prisões da Lava-jato e às reformas liberais prometidas pelo ministro Paulo Guedes (em 2018/2019). Nesse período, apesar de um discurso mais diversificado, o Movimento se manteve preso ao tom inflamatório e propagandístico voltado, sobretudo, para convocar manifestações, ao invés de buscar formar criticamente seu público. Pelo próprio testemunho de Renan Santos e outros, os números exorbitantes de seguidores e visualizações, naqueles anos, sugeriam uma união do movimento antipetista em torno do MBL, que, no mundo offline das reais lealdades e filiações, jamais existiu.
A grande inflexão na história do MBL veio quando do rompimento com Bolsonaro em meados de 2019 em virtude da percebida incoerência do governo com as propostas liberais e anticorrupção da campanha. No período 2019-2021, o Movimento perdeu milhares de membros e apoiadores, perdeu quase todos seus políticos eleitos e sofreu forte assédio investigativo, em parte ilegal, pela Polícia Federal sob Bolsonaro. A hashtag DerreteMBL foi exaustivamente repetida de alto a baixo da internet como um mantra governista com o condão de expurgar o Brasil dos maus e infiéis. O fracasso ao tentar abrir um processo de impeachment, em 2021, foi outro duro revés desses anos. O deputado federal Kim Kataguiri foi reeleito em 2022 com votação 36% menor que em 2018, apesar de figurar entre os deputados melhor avaliados segundo o Ranking dos Políticos. Cristiano Beraldo, Renato Battista e Amanda não conseguiram se eleger em 2022.
Contudo, a gradual perda de prestígio do presidente a partir do caos sangrento da pandemia, do fiasco do 7 de setembro de 2021 (dia do “eu autorizo” e do “deixa de ser canalha, Alexandre de Moraes”), do fiasco na tentativa de golpe de Estado após a eleição e a atitude errática ou omissa de Bolsonaro e sua cúpula nesses episódios contribuíram para projetar o MBL como uma alternativa de direita mais consistente que o bolsonarismo. Somado a isso, o sucesso contínuo nas redes sociais de Arthur do Val (Mamãe falei), Kim Kataguiri, entre outros nomes, permitiram ao Movimento manter parte de seu público original e, sobretudo, atrair novos apoiadores da geração Z não-identificados com a polarização irracional entre Lula e Bolsonaro. As constantes polêmicas e debates com personalidades da esquerda e da direita foram, e continuam sendo, uma eficaz estratégia do Movimento para usar os algoritmos a seu favor e atrair novos apoiadores e curiosos.
Ao longo de seu período de aparente ocaso durante o mandato de Bolsonaro, o Movimento se voltou para dentro, para seus princípios e militantes, buscando aumentar sua consistência ideológica e de quadros. Três iniciativas nesse sentido se destacaram: a abertura da Academia MBL (para formar militantes e analistas), a redação coletiva e gradual do Livro Amarelo (que conterá todos os princípios e projetos do Movimento, ainda em andamento) e o lançamento da Revista Valete (o projeto de ser uma “Piuaí da direita”, nas palavras de Renan Santos, um fórum permanente de debates).
Também durante o governo Bolsonaro, o Movimento fez declarações públicas de mea culpa em relação ao clima de extremismo político pelo qual, naquele momento, se reconheceram como responsáveis pela retórica inflexível contra o PT. Sem abandonar suas pautas históricas (incluindo o antiesquerdismo), o Movimento reconheceu que sua comunicação frequentemente se valeu de simplismos e de ódio, que, mais tarde, contribuíram para o fanatismo bolsonarista, o qual o Movimento então combatia. Um marco dessa mudança de postura foi a manifestação conjunta com setores do PSOL e Ciro Gomes, na Avenida Paulista, pedindo o impeachment de Bolsonaro em 12/09/2021.
As reflexões teóricas do Congresso de 2024 reforçaram o distanciamento, perceptível desde o governo Bolsonaro, do Movimento em relação à ortodoxia liberal em direção a posições propriamente conservadoras
Foi nesse período que começou a se formar o que eu chamaria de “bolha antibolsopetista” em torno de Renan, Kim, Arthur, Nando Moura (um dos criadores do próprio ethos da Nova Direita, ex-aluno do COF), Marcelo Brigadeiro (mestre de Luta Livre em Santa Catarina), Felipe Moura Brasil (atualmente n’O Antagonista, o primeiro aluno do COF a se destacar no mainstream), os canais de humor Allan dos Panos e André Guedes, e, mais recentemente, o Canal Tragicômico e o Espectro Cinza. Também marcou aquele período o diálogo com os intelectuais João Cezar de Castro Rocha e Martim Vasques da Cunha, investigadores do milagre ao contrário do governo Bolsonaro.
Na perspectiva de reforçar a identidade e consistência interna, a ideia de criar um partido, presente no Movimento desde os primeiros anos, ganhou força como o único meio de dar independência aos membros eleitos em relação aos partidos existentes, percebidos como corruptos e fisiológicos. Além disso, o Movimento entendeu que só por meio de um partido próprio poderiam implementar seu projeto de país e chegar, um dia, à presidência da República (chegar à presidência é outro objetivo ventilado desde os primeiros anos). Dessa forma, o grande tema do Congresso de 2024 foi justamente o entrelaçamento da academia, da revista, do Livro Amarelo e do partido como resposta multifacetada ao diagnóstico que o Movimento faz do país.
O último debate realizado durante o Congresso de 2024, já no final da tarde, tratou justamente do “ethos” brasileiro e sua tensão acumulada com o projeto político da República de 88. O colunista da revista Valete Orlando Lima defendeu que grandes estudiosos do “ser brasileiro”, como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso, condenaram esse ethos e desejaram substitui-lo por um modo de vida política cosmopolita, importado e impessoal. Refletindo que, entre a tradição nacional e uma ideia estrangeira, nossos intelectuais canônicos sempre preferiram a ideia abstrata estrangeira, Orlando concluiu que o resultado foi a criação de instituições distantes da população, nas quais ela não se reconhece e que, por fim, acabam não sendo capazes de resolver os problemas reais do país.
Como resposta a esse quadro, Orlando propôs uma reaproximação do ideal político brasileiro com o modo pessoal, familiar e “cordial” de ser do brasileiro real, uma nova política baseada na confiança e no contato direto entre autoridades e cidadãos, ao invés de apostarmos em regras e instituições abstratas que, na prática, muitas vezes mascaram interesses corruptos sob belos nomes universais. Citando um prefácio de FHC onde este escreveu que “o ethos brasileiro é incompatível com a democracia liberal e o livre-mercado”, Orlando criticou essa tradição intelectual que sempre quis “tornar o brasileiro menos brasileiro”, ao invés de buscar aprimorar seu modo espontâneo de ser para fazê-lo mais virtuoso e funcional.
Segundo o palestrante, a consequência deste permanente estado de negação por parte das elites culturais foi a criação de instituições sem base social, sem verdadeiro lastro popular, suspensas no vácuo, e, por isso, destinadas ao fracasso. Sua fala concluiu, de forma convergente a outros discursos do evento, com a necessidade de ser instaurado um novo regime político por meio de nova Constituinte que reconecte Estado e povo, universalismo e tradição, representantes e representados, lei civil e moral popular.
O fundamento deste diagnóstico foi a percepção de que nossa vida política jamais deixou de ser “cordial” e patrimonialista, no entanto o abstratismo republicano permitiu às elites manter os privilégios de continuarem donas do Estado (imunidades, regalias etc), sem mais arcar com as responsabilidades que as antigas aristocracias tinham para com seus súditos, sua obrigação de defendê-los e de estar em contato direto com eles. Dessa forma, por trás de um discurso de igualdade e impessoalidade, o que se gerou foram elites com privilégios, mas sem deveres, e uma massa com deveres, mas sem quem defenda seus direitos. A solução para tal quadro só viria da renovação das elites e por meio de um novo pacto nacional que restabeleça a autoridade do Estado de forma integrada e harmônica com o brasileiro comum e seus valores. Pouco depois da alocução de Orlando Lima, fechando o evento, vibrou o discurso inflamado do provável pré-candidato do Movimento à presidência da República em 2026, o empresário Cristiano Beraldo.
As reflexões teóricas do Congresso de 2024 reforçaram o distanciamento, perceptível desde o governo Bolsonaro, do Movimento em relação à ortodoxia liberal em direção a posições propriamente conservadoras que releem Gilberto Freyre e Oliveira Viana (citados de forma positiva no Congresso). Esse distanciamento se explica, em parte, pela decepção dos membros do MBL com a percebida capitulação de grande parte do movimento liberal ao bolsonarismo, especialmente sensível no caso do Partido Novo, cujo fundador, João Amoedo, abandonou seu partido por se recusar a fazer parte de uma agremiação bolsonarista.
A tentativa de conciliar pensamento liberal e antiliberal em uma nova fórmula política que permita ao Brasil sair da estagnação de décadas é um grande desafio. Considerando que todas as mudanças políticas no país, até hoje, ocorreram por forte influência ou pressão estrangeira, parece irreal que logo agora, quando o país está mais dependente das economias centrais, um movimento endógeno, quase nativista, consiga implementar transformações fundamentais. A tendência dos últimos anos é que o Brasil meneie como uma trincheira disputada na luta geopolítica entre a Otan e a China/Rússia e parece haver pouco espaço, nesse cenário, para uma emancipação nacional conservadora como a encontramos no Livro Amarelo. A provável inclusão do país na Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative) de Xi Jinping e a gradual compra de nossa infraestrutura e ações de grandes empresas pelo capital chinês nos próximos anos, a exemplo do que vem ocorrendo em países do terceiro mundo, limitará ainda mais a margem de ação política autônoma, lembrando que o Executivo (eleito) já se encontra estreitamente sitiado entre o projeto político do STF (não-eleito) e o do centrão (“eleito” com votos comprados).
Percorrendo as páginas da nossa história, identificamos apenas dois movimentos sociais – entendidos como organizações com ideologia definida, quadros formados e hierarquia – que chegaram ao poder ou bem perto dele: o integralismo, nos anos 30, e o petismo nos nossos dias. Abstração feita às incontáveis diferenças de contexto e conteúdo entre ambos, suas trajetórias tiveram algo de decisivo em comum: quando voaram mais alto no poder e pareceram a dois passos do poder total, então “houve mão mais poderosa, zombou deles o Brasil” como diz o velho hino. Quando chegaram ao topo de suas aspirações, alguém (Getúlio, Dutra e Francisco Campos então, Temer, Cunha e a cúpula do PMDB há oito anos) por meio de artimanhas brasileiríssimas, com jeitinho, catimba, malandramente, alcançou cortar o passo às pretensões revolucionárias desses movimentos e pactuou um novo equilíbrio de elites. Esse novo status quo acomodou parte das pretensões reformistas daqueles movimentos, não buscou derrotá-los em profundidade, mas restabeleceu a segurança do poder das velhas oligarquias incluindo nelas parte da cúpula daqueles movimentos.
Todo esse passado não foi por azar, por ingerência da CIA ou (apenas) por incapacidade de gente como Plínio Salgado e Dirceu: quem os deteve foi nosso ethos, foi o Brasil mesmo, congenitamente estranho a sonhos fáusticos de rápida metamorfose social pela alquimia de centralismos políticos. Há algo entranhadamente incompatível entre nossa sociedade e uma ditadura autenticamente fascista ou socialista.
Também o lavajatismo, visto como se fosse um movimento social, pareceu chegar perto do centro do poder, até que este, nas palavras antecipatórias de Romero Jucá, houve por bem “estancar a sangria” do sistema, anular todas as condenações, destruir Moro, Dallagnol e Bretas, cancelar as multas e até ressarcir parte dos corruptos pelo incômodo gerado.
É claro que o projeto do MBL não se inspira naqueles tristes antepassados nem traz soluções centralistas mágicas – muito pelo contrário, a ênfase é no federalismo e na descentralização. Mas a ambição de mudar profundamente nossa cultura política – incluindo até de seus adversários – faz lembrar quem já o aventou um dia e, considerando que hoje o ethos brasileiro parece cada vez mais estagnado na “cordialidade” e no corporativismo, ouso prever que a caça da onça do Partido Missão, por mais longe que vá, não logrará chegar até onde a estrela do PT e o Sigma não chegaram. Podem conquistar tantos e tais cargos, podem chegar até à presidência, mas a inevitável polarização do novo grupo e, não a esquerda, o STF ou o centrão, mas com o próprio ethos nacional, acabará reforçando este, ativando seu modo “sobrevivência” e levando-o languidamente a prevalecer. Não se trata “apenas” de uma luta do Partido Missão contra o sistema, mas com o próprio modo brasileiro de ser e agir: é como se sempre houvesse um Eduardo Cunha, Lira ou Barroso lá no alto para, afinal, mudar tudo sem mudar nada. Mais que uma previsão pessimista minha, este me parece um desafio que nos é lançado na cara pela própria história brasileira.
A melhor aposta do novo Partido Missão é esquecer a minha e a geração dos meus pais, gerações que deram a alma ao petismo/bolsonarismo e perderam o rumo na história
Contudo, aposto, sim, em grandes vitórias eleitorais e até civilizatórias do Partido Missão e suas garras e acredito que podem insuflar salutar ar fresco a instâncias do nosso Estado e sociedade com gente nova e sangue jovem. Aposto no sucesso em 2026, do candidato presidencial do Partido Missão, e o projetaria até ao quarto lugar supondo a continuidade da polarização entre lulismo e bolsonarismo. No cenário provável em que Lula (mesmo debilitado) siga dono da esquerda, o candidato do Partido Missão poderá vir atrás do candidato principal da direita com o centrão (provavelmente, Tarcísio), do candidato lulista (o próprio Lula ou Haddad, Rui Costa, Camilo Santana, Alckmin, Tebet etc) e de um concorrente à direita (Marçal, Eduardo Bolsonaro, Caiado, Van Hattem, Salles, Deltan etc). Ou seja, vejo como provável que a disputa em 2026 espelhe a eleição municipal de São Paulo – que foi vivida por todo o país – com dois candidatos bolsonaristas, um deles em claro favoritismo, além de um lulista hegemônico sobre a esquerda, um alternativo de esquerda (em São Paulo foi Tábata, em 2026 poderá ser Marina, Freixo, Tebet ou até Alckmin) e um alternativo de direita (em São Paulo foi Marina Helena do Novo, em 2026 aposto no candidato do MBL). No entanto, em São Paulo a candidata alternativa de direita amargou um sexto lugar com 1,38% no primeiro turno, mas vejo força e oportunidade para o Partido Missão posicionar seu candidato até o quarto lugar, acima de quem vier como candidato alternativo de esquerda. No entanto, as eleições posteriores parecem reservar melhores oportunidades para nomes novos do Movimento como Guto Zacarias (deputado na ALESP), Matheus Faustino (vereador eleito de Natal-RN), Amanda Vettorazzo (vereadora eleita de São Paulo), entre outros.
A melhor aposta do novo Partido Missão é esquecer a minha e a geração dos meus pais, gerações que deram a alma ao petismo/bolsonarismo e perderam o rumo na história. O que o MBL parece ter entendido é que um engajamento massivo como os de 2013-2016 foi obra da geração dos millenials e parte dos boomers, gerações que se viam ligadas ao pacto de 1988, à “Constituição cidadã”, e nutriam altas expectativas sobre como a “coisa pública” deveria ser – elas se viam como autoras da ordem vigente, que, ao defraudá-las, merecia ser contestada nas ruas sob gritos e xingamentos. A nova geração, ultratribalista, mergulhada no mundo paralelo virtual, mais tendente a “cancelar” e “xingar muito no twitter” do que a manifestações presenciais com estranhos, que, na fase crucial da vida, passou dois anos inteiros ouvindo a ordem “não saia de casa”, dificilmente sairá às ruas por causa de 20 centavos, de bilhões roubados da Petrobrás, do orçamento secreto ou mesmo pela (muito provável) queda da economia. Não acredito que outra grave crise causada internamente, como a de 2015-2016, encherá sequer meia Paulista novamente. Uma transformação muito mais profunda e radical que a de 2013-2019 não virá de nenhuma chamada massificante, por mais urgente, criativa e justificada que seja a convocação.
Além desse senso de participação, um fator implícito para a explosão de 2013 foi a própria estabilidade e aparente prosperidade proporcionadas pela Era Lula em um mundo de relativa paz. Se tudo parecia em ordem e caminhando bem, então por que os serviços públicos eram tão ruins? Por que o welfare state ficou só no papel da Constituição? – eis as verdadeiras indagações dos manifestantes de 2013 e que seguiram alimentando a agitação nas ruas. Agora, porém, outro planeta apresenta-se à nova geração: nada está em ordem, nem internamente nem no palco internacional, tudo parece incerto e evasivo às vésperas de uma terceira guerra mundial, da mutação isolacionista americana e da revolução no mercado de trabalho pela aplicação massiva da IA. Reforçando esse zeitgeist, o clima de violência, guerra ideológica, desconfiança e incomunicabilidade da sociedade brasileira, que são também causas do ultraindividualismo dos Zs, tudo isso converge para gerar, eu não diria a geração mais conformista da história, mas a mais voltada para questões privadas, de micropolítica, e com dificuldades, ou puro desinteresse, para propor medidas para o todo, para a “coisa pública”, que beneficiem quem eu gosto e quem não gosta de mim. O grande protesto dos Z não passará nas ruas nem está hoje nas caixas de comentários: encontra-se na taxa de suicídio dos adolescentes que subiu 81% entre 2010 e 2019 (segundo o Conselho Federal de Medicina), na emigração em massa para o primeiro mundo, no consumo de drogas e de bets. Os inconformados desta geração são coringas individuais e não “guerrilheiros urbanos” ou “revoltados online”.
É a primeira geração da modernidade sem uma utopia, habitando um mundo cada vez mais distópico. É uma geração de guerras sem o sonho do final feliz. No céu etéreo dos arquétipos, é uma Era dos Extremos, mas extremos privados, instagramáveis, memísticos, chorados ou gritados diante da câmera de celular, e, claro, tudo nem um pouco cringe ou blue pill…
Vejo duas tarefas prioritárias para o novo Partido Missão: mergulhar, de verdade, nos “dramas da geração Z”, lembrando que não estamos numa era de oradores políticos, mas de coaches, de observação de comportamentos e de intimismo massificado. Claramente o sucesso do Kim com os Zs deve-se muito mais a uma percepção intimista e inspiradora de quem ele é do que a qualquer discurso, proposta ou ideia sua (embora, obviamente, tudo isso seja necessário para completar o quadro). O mesmo aplica-se ao Arthur: poucos seguidores Z lembrarão algum projeto dele na ALESP, mas muitos se recordam de vídeos do seu canal que os tocaram em pontos bem pessoais e biográficos.
A outra tarefa para o Partido Missão, ainda mais fragosa, é propor eficazmente uma nova imaginação política para essa geração, uma nova imaginação das possibilidades de associação em torno de ideais, das possibilidades de ação para trazer esses ideais para o chão da realidade, uma nova imaginação de como ser extremamente crítico do quadro atual e absolutamente ativo para criar novos cenários a nível local e nacional. Novas interpretações, novos heróis, novos vilões, um novo passado que nos ajude a enxergar um novo presente. Sei que isso já está sendo feito e buscado, mas é decisivo que seja um sincero esforço de comunicação do Partido Missão com a nova geração e não de millenial para millenial ou, ainda, de millenial para boomer. O tom saudosista, grandiloquente, reativo e estereotipado que encontramos em produções no universo reacionário/bolsonarista não é a linguagem que tocará corações e mentes para constituirem uma potente nave de guerra que atravesse as barreiras de segurança e tome Roma das mãos dos bárbaros. O novo Partido Missão precisa de uma nova abordagem, aberta, generosa, cativante de frescor, voltada para o Brasil real, enraizada no melhor da tradição e semeada pacientemente, pois é necessária uma vila inteira para educar uma criança e Roma não foi construída em um dia.
Guilherme Hobbs é desenvolvedor, escritor e tradutor.
Com Marina Silva isolada, agenda ambiental de Lula patina antes da COP-30
Paraná e São Paulo lançam alternativas ao Plano Safra para financiamento do agronegócio
De Silveira a presos do 8/1: sete omissões da pasta de Direitos Humanos de Lula
Dino vira peça-chave para o governo em menos de um ano no STF