Já faz alguns anos que o tema da vez é a reforma da Previdência. Assim como a eterna personagem Geni da canção de Chico Buarque, a Previdência Social no Brasil por vezes detém a fama de “maldita” e, por tantas outras, é “quem vai nos redimir”. Parece que agora estamos na segunda situação. A sociedade – ou parte dela –, mais uma vez, como na canção, em romaria lhe pede de joelhos que acabe com as iniquidades e também com os privilégios, tudo para que a economia volte a crescer e também sob o apelativo argumento de que isso é para “preservar a aposentadoria dos nossos netos”.
Pois bem: diante desta necessidade crescente de mudanças, o que efetivamente ocorre? A economia não cresce por causa do atual sistema previdenciário?
Em nota técnica editada em junho de 2019, o Dieese demonstrou que, entre o início de 2012 e o último trimestre de 2018, houve ampliação de 4,5 milhões de ocupados contribuintes para a Previdência Social, sendo que no citado período o crescimento dos postos formais de trabalho ocorreu efetivamente até o terceiro trimestre de 2014. O estudo deixou bastante claro que o aumento de contribuições ao sistema previdenciário, inclusive daqueles que trabalham por conta própria, os denominados "contribuintes individuais", ocorreu num passado próximo, independentemente de existência de reforma previdenciária.
O que se percebe, então, é que a melhoria do quadro econômico no Brasil não dependeu de grandes reformas, o que sugere que o discurso atual é dissociado da realidade. A retração da economia não decorre do sistema previdenciário e sim da gestão ineficiente de recursos e outras mazelas. Porém se percebe que a piora do quadro econômico acarretou fechamento de postos de trabalho e também impossibilitou o pagamento de contribuição por muitos trabalhadores que atuam por conta própria.
Entre um mineiro e um policial legislativo, que trabalha nas dependências do Congresso, quem é que mereceria o tratamento diferenciado?
Não se defende aqui, é importante frisar, que o sistema não deva sofrer ajustes. Certamente que sim! O que se questiona é se os ajustes estão sendo feitos da forma correta e se os privilégios estão sendo efetivamente combatidos. No fim das contas, se a grande massa trabalhadora e mais carente é que está sendo defendida.
Segundo dados governamentais, os setores que mais causam prejuízo aos cofres do sistema de Previdência são: em primeiro lugar, o dos militares reformados (déficit per capita de R$ 127.692,40), seguido por pensões militares (déficit per capita de R$ 99.217,90), servidores públicos civis (déficit per capita de R$ 63.331,20), INSS rural (déficit per capita de R$ 10.790,90) e, por fim, pelo INSS urbano (déficit per capita de R$ 1.843,20). Os números são significativos, pois revelam que os regimes mais problemáticos – militares e servidores públicos civis – até o presente momento estão excluídos da reforma, pelo menos no que diz respeito a estados e municípios.
Quanto aos militares, ficou evidente que aquilo que foi denominado reforma nada mais foi do que um plano de cargos e salários que trouxe muito mais benefícios que sacrifícios. Vale aqui lembrar que o sistema de seguridade social deve respeitar o princípio da solidariedade. Dele decorrem bônus e também ônus, pois ser solidário quer dizer que em momentos de crise todos devem trazer fazer sacrifícios para o bem geral. Logo, era mais que esperado o sacrifício também dos militares, até pelo fato de ser este o sistema com mais problemas.
Leia também: A reforma da Previdência e o mito do "almoço grátis" (artigo de Dimitri Martins, publicado em 11 de julho de 2019)
Por outro lado, quando falamos do regime geral, composto pelos que estão sob a proteção do INSS, é evidente que grande parte da população brasileira, sobretudo a mais pobre, não consegue emprego após certa idade (a taxa gira em torno de 10% para homens após os 45 anos) e que as mulheres com mais de 60 anos só se fazem presentes em 29,5% dos postos de trabalho. Apesar disso, a reforma pretende acabar com a aposentadoria por tempo de contribuição, impondo idade mínima como regra geral para os benefícios deste regime. Certamente, vários trabalhadores com longo tempo de contribuição restarão impossibilitados de solicitar benefício, justamente por não terem atingido a idade mínima.
Outro ponto interessante é a imposição de idade mínima para os trabalhadores que estão expostos a agentes nocivos. Estamos aqui falando de atividades de alto risco, como a exercida por caldeireiros e mineiros. Para estes praticamente se extingue o direito à denominada "aposentadoria especial". Porém, em votação realizada na Câmara dos Deputados, restou atendido o pleito para regras diferenciadas aos agentes carcerários e policiais, inclusive legislativos. Que a atividade policial é de alto risco e merece tratamento diferenciado, não se discute! Agora vale a reflexão: entre um mineiro e um policial legislativo (aqueles que trabalham nas dependências do Congresso), quem é que mereceria o tratamento diferenciado? Isso sem falar na aposentadoria dos parlamentares...
Como dito anteriormente, reformar é necessário! Desnecessário é manter privilégios e deixar os que já são desprotegidos ou deficientemente amparados em situação ainda pior.
André Bittencourt, advogado atuante nas áreas de Direito Social e Direito Empresarial Previdenciário, é professor de extensão e pós-graduação em diversas instituições de ensino brasileiras.