Há quem diga que o sistema de impostos no Brasil é um verdadeiro manicômio tributário: confuso, burocratizado e difícil de compreender – afirmação que está correta, em parte. Mas afinal, a meia verdade é uma mentira? De fato, está tudo errado em nossa legislação, que é confusa, confiscatória e inconstitucional, convindo lembrar que a carga tributária entre nós é superior a dos Estados Unidos e da Suíça. E o que é pior, tudo sem contrapartida, conforme estampa uma pesquisa realizada pelo IBPT, compreendendo 30 países, na qual o nosso país ocupou simplesmente o último lugar em termos de falta ou péssima qualidade do serviço público.
Ocorre que, ao contrário do que dizem, a reforma tributária não vai mudar isso; ela propõe fazer alterações justamente naquilo que há de melhor e que poderia funcionar de forma adequada: a Constituição. Pode causar surpresa, mas na minha percepção (e também na opinião de festejados doutrinadores brasileiros, argentinos, uruguaios, portugueses e espanhóis), nosso sistema tributário descrito na Carta Magna é exemplar. Trata-se do melhor em toda a história do Direito – e não se trata de uma opinião.
Nenhuma Constituição de qualquer país do mundo dedica um capítulo inteiro à tributação, a exemplo da nossa. Mas isso não basta: no caso brasileiro, a Carta Magna pormenoriza e detalha os contornos dos tributos mais importantes, de forma a otimizar a segurança jurídica – o que garante segurança a quem paga a conta (o cidadão, ainda que diretamente ou indiretamente). Para exemplificar, a nossa Constituição chega aos mínimos detalhes ao dizer que o imposto de renda será legislado no plano infraconstitucional, respeitando a universalidade, a generalidade e a progressividade. Isso quer dizer que quanto mais, paga mais, e que quanto menos paga menos.
Mas isso não funciona na prática. Basta ver que quem recebe R$ 5 mil no Brasil paga 27,5% de imposto de renda. E quem ganha centenas de milhões de reais em distribuição de lucros, fica isento de imposto e não precisa pagar absolutamente nada aos cofres públicos. Ou seja, há descumprimento da Constituição.
A nossa Constituição, por exemplo, limita o poder do Estado (no sentido amplo) ao estabelecer uma série de regras e de matrizes constitucionais que não podem ser desrespeitadas, mas o são. A lei passa ao largo de tudo, portanto, o problema não é Constituição – aliás, ela é de uma clareza solar. E no caso da Reforma Tributária, a ideia é mudar justamente ela: a Constituição.
O projeto de Reforma provém de uma emenda constitucional, dentro da qual propõe-se mudar toda a configuração do desenho constitucional. Cumpre sublinhar que as emendas podem emendar aquilo que é preexistente e, portanto, sujeito à implementação. No caso, somente uma constituinte é que poderia revogar os pilares da tributação no Constituição e criar um novo sistema; afora isso, cabe destacar que o nosso sistema tributário originário foi implantado por meio da Emenda 18/65 e sua estrutura é mantida até os dias de hoje. Em sua essência ele limita o poder do Estado ao mesmo tempo que dá o poder para arrecadar o necessário para buscar a realização do bem comum.
Ainda detalha com segurança e com clareza incrível os contornos ao dizer que o ICMS será seletivo, ou seja, quanto mais importante a mercadoria, menor o valor que deve pagar; e quanto mais supérflua, mais paga, o que não se vê na prática, a exemplo de combustíveis e energia elétrica sujeitos a alíquotas elevadas.
Nossa Carta Magna proclama, por exemplo, o postulado da capacidade contributiva, estabelecendo que o legislador deveria ser obrigado a privilegiar os impostos sobre a renda e sobre a propriedade, porque são os que melhor espelham a capacidade contributiva, ou seja, a capacidade de pagar, pelo que o consumo deveria ser minimamente tributado.
Não obstante, diferentemente da determinação constitucional, a receita que o Brasil arrecada proveniente do consumo representa perto de 70% da tributação, o que é injusto porque significa que quem tem menos paga a conta do Estado. Para fins de comparação, a média dos países da OCDE se situam em torno de 35%sobre o consumo, sendo que no Japão a média é de 18% e nos Estados Unidos é 17%.
Por isso, pergunto: o que sofrerá mudanças na Reforma Tributária? A legislação é inconstitucional? Não. Vão mudar a Constituição, o conjunto de regras no qual tudo está certo. Por isso, volto a dizer: sem dúvidas, a Reforma Tributária é uma falácia que, ao contrário de simplificar o sistema, vai torná-lo complexo e ininteligível, sem contar que vai acarretar aumento de carga tributária, aliás, já antecipada com o veto da tributação da folha de pagamento em vez do faturamento, afora outros projetos de tributação de grandes investimentos, jogos e assim avante.
Eduardo Marcial Ferreira Jardim é mestre e doutor em Direito, professor aposentado da Cátedra de Tributário na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, membro fundador do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT). É autor de várias obras jurídicas e sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados.