As ações de enfrentamento à pandemia do coronavírus no biênio 2020/2021 promoverão um rombo nas contas públicas brasileiras da ordem de R$ 870 bilhões e, em consequência, a dívida pública tangenciará os estratosféricos 100% do PIB – eram 62% há apenas dez anos. Não restam dúvidas de que, em função da excepcionalidade e em nome da preservação da vida, são e foram medidas necessárias, ainda que denúncias de desvios e má gestão de recursos devam ser apuradas com todo o rigor da lei. Mesmo assim, é uma espada de Dâmocles a balançar sobre as cabeças de nossos governantes, em especial da esfera federal.
Isto posto, é urgente a realização – por tantas vezes anunciada, tantas vezes adiada – das reformas tributária e administrativa, temas esses que até hoje não passaram de um mero jogo de cena. Em 2019, os entes federados gastaram R$ 920 bilhões com os funcionários administrativos, legislativos e judiciários, e há um consenso sobre as profundas distorções salariais – seja internamente, seja ao cotejar-se com o mercado de trabalho – que precisam ser enfrentadas para que os direitos legítimos dos servidores sejam preservados.
Além de buscar uma maior racionalidade dos gastos públicos, é imprescindível a persecução de uma maior eficiência de gestão para o enfrentamento das incontáveis mazelas brasileiras, uma vez que nosso problema não é, nem nunca foi, falta de recursos financeiros para o Estado. O brasileiro médio trabalhou em 2019 um total de 128 dias, mais de quatro meses, para cumprir suas obrigações com os fiscos municipais, estaduais e federal, deixando nos cofres do governo R$ 2,39 trilhões. Mas a visão míope de que é mais fácil aumentar os impostos que administrar de modo eficiente fez com que, desde o início do mandato do presidente José Sarney, em 1985, a carga de impostos, taxas e contribuições saltasse de 21% do PIB para 35,07% em 2019.
Neste ínterim, com passagens de governantes dos mais diversos matizes no espectro ideológico, tivemos de suportar bovinamente a crescente voracidade arrecadatória, sem uma contrapartida proporcional por parte do Estado, seja na amplitude e na qualidade dos serviços prestados, seja na promoção de justiça social, sem falar na eterna sombra da corrupção que nunca nos abandona. “Os impostos têm limites naturais, além dos quais uma nação se deita para morrer ou se levanta para lutar”, se faz oportuno Joseph-Ernest Renan, filósofo e historiador francês do século 19.
Com a autoridade de ser um dos maiores especialistas no tema e ter sido o relator de uma das comissões da reforma tributária na Câmara dos Deputados, Luiz Carlos Hauly é pertinente: “Estou convencido de que mais de 50% da responsabilidade pelo atraso da nossa economia é do nosso sistema tributário anárquico e caótico, que mata as empresas e os empregos, concentra a riqueza e pune os mais pobres – os que ganham até dois salários mínimos pagam 53,9% de carga tributária, enquanto quem ganha acima de 30 salários mínimos paga 29%”.
O objetivo primeiro de uma reforma tributária deve ser desonerar parte dos encargos sobre salários e sobre o consumo de bens e serviços essenciais – e, por conta deste e de outros fatores, isso só é viável em conjunto com a reforma administrativa. O Brasil tem quase 50% de sua arrecadação proveniente do consumo, ao passo que nos países da OCDE a média é de 32%. Não há equidade e, por consequência, a base da pirâmide social paga proporcionalmente mais. É um repto necessário, pois nossa estrutura tributária é irracional, cara e antes de tudo injusta. Por exemplo, há décadas que não se corrige adequadamente a tabela do Imposto de Renda – um confisco forçado que atingiu este ano 103% de defasagem, de acordo com o Sindifisco. Ou seja, se fosse aplicada a inflação, estariam isentos os contribuintes que ganham até R$ 3.881 mensais, embora hoje os tentáculos da Receita Federal alcancem o contribuinte que aufere uma renda mensal de R$ 1.903,98, sendo os maiores prejudicados os assalariados da classe média-baixa.
Nas nações em que se executa uma boa política de bem-estar social – como é o caso dos nórdicos –, a tributação é também elevada, algo próximo de 50%, mas nestes países o cidadão é amparado pelo Estado, que proporciona a todos uma vida digna do berço até a sepultura – de mamando a caducando para fazer galhofa.
No entanto, ante um fisco voraz e com má aplicação dos recursos, como no Brasil, as pessoas e empresas não apenas se conformam. Elas também se vingam, com mais sonegação, elisão, pirataria, informalidade, corrupção, contrabando e calote. Condenável, sim, mas esta é a natureza humana. A história ensina que tributos exacerbados e baixo retorno social formam uma mistura explosiva, pois não apenas comprometem o setor produtivo, mas também promovem o esgarçamento do tecido moral e ético.
Jacir J. Venturi foi professor da UFPR, da PUCPR e da Universidade Positivo, e é ex-vice-presidente da Associação Comercial do Paraná.
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