O Estado é a sociedade organizada a propósito de deliberar e atuar na persecução do interesse público, do interesse coletivo. Trata-se de uma ficção jurídica criada para que objetivos coletivos, que não seriam obtidos isoladamente, possam ser concretizados em prol da coletividade. A crise financeira mundial, iniciada no berço do capitalismo, tem suscitado profundas reflexões acerca de modelo de Estado. De um lado, diz-se que findou o liberalismo, ou que o neoliberalismo foi derrotado. De outro, a exemplo do que sustentou em recente entrevista o vice-presidente do Instituto Liberal, diz-se até mesmo que os responsáveis pela crise são os social-democratas, e que ela (a crise) se deve não ao liberalismo, mas ao excesso de intervenção estatal na definição de taxas de juros. Independentemente de estarmos a presenciar o final de uma era ou não, o que destaca-se como relevante é o papel decisivo do Estado para deliberar e atuar no exercício de políticas públicas, inclusive as direcionadas à regulação da economia. Propõe-se desconsiderar, ainda que topicamente, as rotulações de cunho ideológico, no mais das vezes também utilizadas para salvaguardar interesses nem sempre legítimos de grupos determinados.
O fato é que a crise deixa evidente que as relações jurídicas, sociais e econômicas no âmbito de uma nação não podem ficar integralmente à mercê das ditas "regras de mercado", expressão cujo caráter polissêmico e indeterminação conceitual podem produzir resultados indesejáveis e absolutamente inesperados na sociedade, à medida que o seu alcance seja manipulado por interesses meramente privados. A iniciativa privada tem seu espaço perfeitamente delimitado pela Constituição Federal, que assegura que a ordem econômica seja regida pelos princípios da livre iniciativa e livre concorrência (art. 170). Contudo, a atuação privada se subordina a outros princípios e valores constitucionais, como a supremacia do interesse público, a dignidade da pessoa humana, e a função social da propriedade (qualquer propriedade, inclusive do capital!).
Os propósitos da iniciativa privada e do Estado são diversos, conquanto possam por vezes coincidir. O propósito elementar da iniciativa privada é a obtenção de lucro, o que é legítimo, correto, adequado e importante, uma vez que a lucratividade da ação privada produz importantes e indispensáveis repercussões de ordem social e econômica (geração de empregos, inovações tecnológicas, arrecadação tributária, etc.) O propósito do Estado é o interesse público, e sua ação reflete a vontade popular exercida por intermédio da democracia representativa em que pesem todas as críticas que se possa fazer a esse sistema, especialmente por conta da ação corrupta e espúria de alguns parlamentares e governantes. O que se pretende sustentar é que, embora a ação privada seja indispensável para o equilíbrio institucional, a plena liberdade de ação privada jamais produzirá como resultado o bem comum, entendida essa noção como um determinado estado de satisfação e de realização humanas, no qual necessidades básicas e fundamentais sejam razoavelmente atendidas.
O Estado, pois, deve ser organizado com vistas à intervenção e a regulação necessárias (não mínima, nem máxima, mas a necessária!) de todas as formas de relacionamento (inclusive econômico), com foco no bem comum. Assim não for, como prenunciado por Freud "os relacionamentos ficarão sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente (ou economicamente?) mais forte decidirá no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos". Não se defende a estatização plena e ampla da vida social e econômica, utopia que quando tentada no mundo dos fatos gerou efeitos danosos para a civilização do leste europeu, como a história já demonstrou. O caminho do meio é o caminho seguro. Deve ser assegurada a liberdade de atuação privada na economia, sob regras de mercado, mas também sob tutela do Estado, para que excessos decorrentes da livre iniciativa e da livre concorrência sejam coibidos antes produzam danos para a sociedade. De outro ângulo, deve ser também assegurado o espaço necessário de atuação estatal na implementação de políticas públicas, com lastro na Constituição, para a obtenção dos valores maiores de qualquer nação: a satisfação plena das necessidades de seu povo e a dignidade da pessoa humana.
José Anacleto Abduch Santos, mestre em Direito Administrativo, é advogado, procurador do Estado e professor do Unicuritiba. joseanacleto@uol.com.br