Ela usa um decote que deixa aparecer o vão entre os seios, ele sofre para desviar os olhos. Outra usa roupas justas, a lingerie marca discretamente a pele debaixo da saia e ele acha uma delícia passear com os olhos em ziguezague nos quadris da moça. E as covinhas do rosto, quando ela sorri? Sob a burca, a mais fechada das vestimentas islâmicas, uma outra caminha e o fulano sonha um corpo nas formas insinuadas.

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Ele veste calça jeans surrada e camiseta, os braços que brotam das mangas a fazem revirar os olhinhos quando ele se abaixa para amarrar os tênis. Outro, de bermudas, deixa à mostra as saliências da panturrilha e ela alisa o contrapelo, na imaginação. Debaixo do terno e da gravata de outro a moça brinca de adivinhar um torso convidativo e acolhedor. O que era aquela barbicha rala e os óculos redondinhos, ainda outra finge desdém sabendo-se fascinada.

Serpenteando as cenas acima está um velho conhecido: o desejo: esse desconhecido.

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Com a crescente e amplificada reação de mulheres contra práticas diárias de violência – física ou não – e a consequente luta por dignidade e direitos, crescem também contrarreações raivosas. Uma delas, ingênua mas igualmente perniciosa, diz que o mundo anda mais chato porque “não se pode mais nem xavecar direito”.

Daí suspeito: uma das origens da pobreza de espírito que tem na brutalidade o artifício da conquista advém em grande parte do desprezo à palavra

O feminismo, até onde sei, não está interessado em acabar com o erotismo, não pretende e nem conseguiria exterminar o desejo. Não é crime desejar, sentir o peito ansioso, nem pensar ô lá em casa, areia do meu cimento, coca-cola no meu deserto. O que passa dentro da cabeça é propriedade do dono da cabeça. Ninguém tem nada a ver com isso. Todos os fetiches são possíveis. A vida tem mais cor com fantasia. E entre as quatro paredes reais ou simbólicas da privacidade, desfrutar-se é permitido.

Mas.

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Nas duas vezes em que briguei na vida, ambas na infância, fui me justificar em casa e levei bordoadas idênticas, feitas de palavras: quando um não quer, dois não brigam. Não deveríamos todos, depois de jovens, saber que quando um não quer dois não transam? E que os desejos só abrirão as portas das quatro paredes e ganharão o corpo do outro quando do lado de lá também tiver alguém com a mesma chave querendo girar na fechadura? Relação é encontro, não arrombamento.

Daí suspeito: uma das origens da pobreza de espírito que tem na brutalidade o artifício da conquista – e conquistar tem a ver com cravar bandeira, abocanhar território – advém em grande parte do desprezo à palavra. A linguagem verbal, que nos faz famosos (só entre nós mesmos) como “seres de linguagem”, é no mínimo cem vezes mais fantástica e complexa do que as invenções da era digital. Dos pequenos sons que designavam coisas, passamos a nomear ações, estados abstratos, marcando tempos e compondo obras-primas que traduzem nossas escuridões. As palavras jogam alguma luz nos cantos mal iluminados. É assim que a gente se compreende: se estranhando.

Pela palavra o desejo desliza, sai lubrificado e chega ao outro. E há tanta palavra sedutora. Ela nos faz desviar do caminho ordinário. Sedução é desvio, é abrir de repente uma vereda insuspeitada. Mas quando não há palavras para conduzir o desejo? Quando elas faltam porque nunca existiram?

Há relatos inesgotáveis de estupro em várias espécies de animais, de focas a patos, de peixes a insetos. Mas é miserável demais apoiar-se no silogismo canhestro: se os animais são assim e nós somos animais não há muito o que fazer. Mais do que desenvolver polegar opositor para segurar um tacape, também conseguimos desenvolver um sistema de linguagem capaz de dar vazão a outras necessidades – comunicação, negociação, sedução, lirismo. Para deter a barbárie, precisamos das palavras. Mesmo que às vezes a gente fique sem elas, boquiabertos.

Somos da mesma espécie de Shakespeare, de Machado de Assis, de tantos outros. Os trinta sujeitos que recentemente estupraram uma menina de dezesseis anos – embora esse caso pouco ou nada tenha a ver com erotismo e desejo –, somados aos milhões que os aplaudem aberta ou veladamente, entre eles políticos e atores que pregam a retirada da discussão de gênero nas escolas, são feitos da mesma matéria, têm os mesmos neurônios, as mesmas sinapses potenciais.

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Eu não digo que a literatura vai salvar o mundo, há grandes leitores psicopatas. Mas a palavra na literatura tem algumas coragens que o discurso diário e enformado não tem: o de meter as mãos na lama e buscar humanidade vasculhando o lodo que, por descuido ou conforto, deixamos escondido. A literatura é um grande conhece-te-a-ti-mesmo, conhece-o-que-te-circunda, conhece-o-outro-que-te-rodeia. Fora dessa arena de debates ficcionais há um coliseu de bestializados que grunhem as mesmas meias-dúzias de palavras, que não conseguem costurar discursos, pesar ideologias, ler livros, ler o mundo com olhos mais perplexos e complexos. E quando falo de miséria, não me refiro à miséria social, mas à intelectual e emocional. Nesse quesito todas as nossas classes são mendigas, zanzam sem eira nem beira no triste mapa da fome.

A paquera, os olhares furtivos, os pensamentos secretos, os toques que fazem o peito pular e outras partes do corpo agirem em segredo, tudo faz parte da delícia de ser humano. Isso não vai acabar, não pode acabar. O que precisa ter fim, enfim, é a violência que, órfãos das palavras, os boçais usam como instrumento para suas ambições e conquistas.

Cezar Tridapalli é escritor curitibano, autor dos romances Pequena biografia de desejos (Editora 7Letras, 2011) e O beijo de Schiller (Arte&Letra, 2014), vencedor do Prêmio Minas Gerais de Literatura).