Acabo de voltar de Roma, onde assisti à missa de canonização de Francisco, Mooti e Rafael Massabki, os irmãos Massabki. Sabia que os três parentes – segundo meu pai, seus tios-avôs – eram mártires cristãos. Mas a notícia de sua canonização foi totalmente inesperada. E nos chegou de forma um tanto acidental.
Uma prima que mora bem longe, Aline, me encontra numa rede social alguns anos atrás. Trocamos mensagens, e confirmamos que somos parentes. Anos depois, outro primo, João Luiz, bastante próximo dela, me contata. Trocamos informações. Ele me conta, no começo do mês de julho, que os três mártires irmãos Massabki serão canonizados no dia 20 de outubro de 2024. Até a presente data, não recebo essa informação de mais ninguém. Alguns conhecidos de minha esposa ligados à Igreja Católica comentam que leram sobre a canonização de três irmãos Massabki, mas não imaginaram que haveria relação conosco.
Busco qualquer coisa na internet sobre a celebração. Encontro a confirmação no Vatican News, mas sem informações práticas adicionais. É possível assistir à celebração da canonização? É uma missa comum? É um ritual fechado no interior do Vaticano? Começamos a pesquisar passagens aéreas. Minha esposa fala com o pessoal da área de publicidade da Canção Nova, que sugere descobrir quem é o bispo que advogou a causa dos irmãos Massabki. Não temos sucesso. O assunto esfria, pois não conseguimos descobrir mais nada...
Em agosto, após uma conversa com meu irmão, retomo o assunto. Disparo e-mails em várias direções, explicando a situação – somos parentes dos futuros santos! – e solicitando informações de como participar da missa. Localizo no site do Vaticano um link com orientações e um endereço de e-mail para solicitação de ingressos para as missas papais. Parece que estamos no caminho certo. No entanto, o mês de outubro ainda não aparece no calendário papal.
Mas o que significa esta canonização? Tenho alguma frustração por não saber com certeza qual a linha genealógica que nos liga aos três santos Massabki. Venho tentando obter essas informações, mas, por enquanto, sem sucesso
Continuo em busca de informações. Minha amiga Antonella parece conhecer alguém que conhece alguém dentro do Vaticano. Meu irmão se lembra do monsenhor Marcos, do Coral do Vaticano, irmão de uma amiga já falecida. Não temos seu contato. Nas buscas da internet não conseguimos descobrir seu e-mail ou telefone. Minha esposa conversa novamente com seus contatos católicos. Eles localizam e passam o endereço de e-mail do monsenhor. Meu irmão lhe escreve um e-mail. Uma semana se passa sem que ele lhe responda. Todos os dias acesso o calendário oficial do Vaticano, em busca de atualizações. Somente em 2 de setembro a agenda para o mês de outubro aparece, e nele é confirmada a canonização para o dia 20.
O pensamento que nos motiva é o de que assistir à missa de canonização de um antepassado (ou melhor, três) é uma oportunidade única na vida. Mas não temos certeza se isso será possível! Resta a insegurança de fazer uma viagem com um objetivo específico e não vê-lo atingido. Mas decidimos arriscar, pois nem os voos nem as hospedagens estão ficando mais baratas. Compramos as passagens aéreas no mesmo dia.
No dia seguinte, monsenhor Marcos responde o e-mail. É atencioso e afirma que vai ajudar no que for possível. Pede os nomes dos quatro peregrinos. Uma excelente notícia. Dia 27 de setembro recebo e-mail do Vaticano em resposta ao meu pedido do mês anterior, com orientações para retirada dos quatro bilhetes – sucesso!
No dia 14 de outubro, já na Itália, sou contatado pela Rachel, amiga da Antonella. Comenta que falou com o padre Flavio, diz que “vai dar certo”, me passa o contato dele e encaminha também a troca de mensagens entre ambos. Contato o padre no dia seguinte, me identificando e informando que chegaremos a Roma no dia 18, sexta-feira, dois dias antes da missa. Chegamos. É sexta-feira à tarde. Temos três caminhos possíveis para obter nossos ingressos: 1) ir ao Portão de Bronze do Palácio Apostólico do Vaticano (Piazza S.Pietro, Colunata da Direita), entre 9h e 19h do sábado ou a partir das 7h30 do domingo, com o e-mail do Vaticano em mãos; contatar monsenhor Marcos, e descobrir se ele, de fato, conseguiu ingressos; contatar o padre Flavio, para combinar a retirada dos ingressos. Meu irmão envia mensagem ao monsenhor; eu envio mensagem ao padre.
O monsenhor se oferece para deixar os ingressos na portaria do nosso hotel – mas estamos num quarto do tipo “airbnb”, sem essa funcionalidade. Padre Flavio sugere que nos encontremos naquela mesma noite para que ele nos dê os convites. Proposta vencedora! Pergunto o horário; ele não responde. À noite, envio uma mensagem dizendo que estamos pertinho do Vaticano. Ele pede para nos encontrarmos do lado esquerdo da Basílica. Nos encaminhamos para a colunata que forma a Piazza San Pietro. Ao chegar mandamos uma foto dos quatro, avisando que já estamos no local.
Ele “desce” (diz que está “descendo”). É um padre jovem. Conversa conosco. Está com os convites nas mãos. Nos pergunta da Rachel, do seu marido... Explico que, na realidade, conhecemos a Rachel apenas por aplicativo de mensagens e através de uma amiga em comum. Ele prolonga a conversa. Eu sinto como se estivesse sendo testado... Ele é muito simpático, e nos entrega os ingressos.
Padre Flavio nos convida para uma celebração do Santíssimo e um Terço no dia seguinte, sábado. A missa de canonização é somente no domingo. Aceitamos o convite para o Terço, que seria à noite, mas acabamos por combinar de encontrá-lo no sábado à tarde, pouco antes da celebração do Santíssimo. E o fazemos, no horário combinado, pontualmente às 15h10.
O seguimos ao interior da Basilica di San Pietro. Passamos por alguns controles onde há a famosa guarda suíça. Assim que entramos, ele faz um sinal que me parece uma despedida. Algo do tipo: “fruam a elevação de estar aqui em São Pedro!”. Meu irmão me pergunta do padre, e eu digo que ele já se foi. Em vista disso, ele vai tirar uma foto da Pietá, deslocada de seu local usual, em virtude das inúmeras restaurações e reformas em andamento em Roma, motivadas pelo Jubileu de 2025.
Pouco depois o padre Flávio surge apressado – “vocês se perderam!” – e nos pede para segui-lo. Ele vai caminhando ao longo da Basílica e passa novamente por alguns controles. Somos barrados. Ele olha para trás e diz “quattro”. Somos nós. O segurança nos deixa passar. Estamos numa capela do lado direito da Basílica. Descubro depois que é a Cappela del Santissimo Sacramento. O próprio padre Flavio é quem faz a celebração.
Choro em diversos momentos. Ele menciona a canonização que se daria no dia seguinte, e fala sobre santidade. Esse momento é mais tocante para mim do que seria a missa papal do dia seguinte. Ele é o real momento de introspecção e reflexão. Depois disso, não o vemos mais, e, infelizmente, não temos a oportunidade de nos despedir ou agradecer apropriadamente.
Ainda não é noite, e perambulamos pela Basílica, vendo suas lindas obras de arte, suas demais capelas, as tumbas papais. Meu irmão comenta de subir à cúpula; mas, por fim, apenas eu o faço, ninguém mais. Essas escadarias de igrejas e torres antigas me fascinam, pelo esforço, pela variedade de suas tipologias e de suas formas e pela passagem do tempo registrada no desgaste de seus degraus. Desço para encontrar meus companheiros de viagem. Vamos para o hotel cansados, e desistimos de participar do terço noturno. Acho que a missa vespertina equivaleu.
Apesar de já termos os ingressos, acordamos cedo no domingo para conseguir lugar perto do altar. Chegamos às 8h nas proximidades da Basílica. Há alguns bloqueios, e os carabinieri nos orientam a dar a volta. Não perdemos mais do que cinco minutos.
Há vários controles de acesso, mas ninguém nos pede para mostrar os ingressos. Cada um de nós recebe o livreto litúrgico (Vaticano, 2024). Vamos avançando e conseguimos nos acomodar perto do altar. Acho que ficamos mais próximos do papa do que de muitos ídolos de rock a cujos shows já assistimos. O horário oficial da missa é 10h30. Então é esperar, ver o que acontece ao redor. Há muitos grupos de peregrinos de diversos países com alguma relação com os quase-santos. Ao todo, quatorze pessoas seriam canonizadas naquela manhã: Giuseppe Allamano (italiano); Marie-Léonie Paradis (canadense); Elena Guerra (italiana); Os onze mártires de Damasco: os frades Manuel Ruiz Lópes, Carmelo Bolta Bañuls, Nicanor Ascanio Soria, Nicolás María Alberca Torres, Pedro Nolasco Soler Méndez, Francisco Pinazo Peñalver, Juan Jacob Fernández (espanhóis) e Engelbert Kolland (austríaco). Completam “os onze” os três irmãos Massabki: Francisco, Mooti e Rafael. Eles, nossos prováveis tios-bisavós, leigos maronitas, são o motivo de nossa viagem e de estarmos assistindo àquela missa.
“Os onze ‘mártires de Damasco’ foram assassinados na noite de 9 para 10 de julho de 1860 no Convento de São Paulo [em Damasco, Síria], no contexto da perseguição dos cristãos pelos drusos xiitas, que se espalhou do Líbano para a Síria ao longo de vários meses. [...] FRANCISCO, MOOTI e RAFAEL MASSABKI [...] haviam permanecido no convento mais tempo do que o habitual naquela noite [...]. Francisco, pai de oito filhos e exemplar em sua generosidade para com os pobres, trabalhava como comerciante de seda e era muito estimado em Damasco. Mooti, casado e pai de cinco filhos, era professor e catequista. Rafael, o mais novo dos três irmãos, costumava permanecer longos períodos em oração na igreja do convento e estava sempre disponível para ajudar nas necessidades da comunidade”, diz a descrição do Vaticano.
Conforme o texto The Massabki Brothers, “Os assassinos disseram a ele [Francisco]: ‘O xeque Abdallah nos enviou para salvá-lo da morte; você, seus irmãos, suas famílias e todos aqueles que dependem de você para proteção, com a condição de que você renuncie à sua fé e se converta ao Islã’. Francisco respondeu corajosamente: ‘O xeque Abdallah pode ficar com o dinheiro que lhe emprestei, também pode tirar minha vida; mas a minha fé, ninguém pode me fazer negar. Sou cristão maronita e na fé de Cristo morrerei. Como nosso Senhor Jesus ordenou, não tememos aqueles que podem matar o corpo’”.
Vejo uma senhora com um boné que parece fazer alusão aos três mártires Massabki. Vou falar com ela. Conversamos em inglês. Muito simpática, me diz que faz parte de um grupo de cerca de 500 pessoas que vieram da Síria e do Líbano para a canonização dos irmãos Massabki. O boné foi feito pela Igreja Maronita em conjunto com o Vaticano, e presenteado àqueles fiéis. Eu explico que somos Massabki, do Brasil, e ela nos convida a sentar junto com o grupo.
No decorrer dessa conversa, no entanto, a simpática senhora chama uma amiga do grupo, que, ao saber que meu pai veio da Síria, fecha a cara e fala algo como “os do Líbano são melhores”. Eu me mantenho amistoso e comento que os Massabki – nós em particular – têm família tanto na Síria como no Líbano, mas ela insiste: “mas os do Líbano são melhores”. Acho melhor continuar sentado umas fileiras para trás, onde estamos, e recuso educadamente o convite.
Entre nove e meia e dez e meia, é recitado o Terço. Uma voz feminina, suave, melódica, tranquila e com dicção perfeita, conduz a reza em latim. Em especial a Ave Maria me toca bastante durante a celebração, sempre que repetida: Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc, et in hora mortis nostrae. Amen.
A missa em si começa pontualmente às 10h30.O papa Francisco está bastante debilitado. Chega em cadeira de rodas, e demonstra grande dificuldade para se locomover. O ritual é quase todo em latim, e cantado, exceto por trechos pontuais. O livreto litúrgico, com tradução em inglês e italiano, permite acompanhar bem a celebração. Dos meus parentes, o papa pronuncia o nome errado: Massaki, ao invés de Massabki. A homilia, serena, me parece muito curta, mas na realidade dura cerca de 10 minutos. Ao final da cerimônia, demonstrando maior animação, Francisco dá algumas voltas com o “papamóvel” pela Piazza San Pietro, acenando para os fiéis, para a alegria de todos. Passa bem perto de onde estamos. Tiramos muitos fotos e fazemos alguns vídeos.
Parece-me que a grandeza da cerimônia papal ofusca o seu significado. Não me refiro ao formato em latim, ou à sequência ritual, mas à impessoalidade. Lembro de João Paulo II, e imagino – ou fantasio – que a cerimônia seria muito diferente se fosse ele o papa. Teria mais sentimento e, talvez, penetrasse mais fundo em nossos corações.
Ao longo das últimas semanas, e ainda hoje, tenho refletido sobre a canonização dos irmãos Massabki. O que nos levou até a celebração em Roma? Sorte, acaso. Não fosse pelo João Luiz, provavelmente não teríamos ficado sabendo da canonização a tempo. Boa vontade e empatia de muitas pessoas. De minha esposa e meu irmão, que pensaram em formas de obter informações e contatos. Da Antonella, da Rachel, do Monsenhor Marcos e do Padre Flavio. De chefes que se sensibilizaram com nossa história e autorizaram férias em momentos delicados.
Perseverança. Indispensável para atingir qualquer objetivo não imediato. Tínhamos pouca informação, nenhuma certeza, mas decidimos acreditar na importância daquela peregrinação. Uma oportunidade única na vida.
Mas o que significa esta canonização? Tenho alguma frustração por não saber com certeza qual a linha genealógica que nos liga aos três santos irmãos Massabki. Venho tentando obter essas informações, mas, por enquanto, sem sucesso. Depois que meus pais faleceram, raízes e memória passaram a ser muito importantes para mim. “[...] aos três irmãos [Massabki] foi dada a chance de renunciar à sua fé e se converter ou morrer. Todos os três escolheram professar [a sua fé em] Jesus Cristo para a vida eterna”, lê-se na Maronite Eparchy of Australia. Em essência, o que os definiu, primeiro como mártires, e, depois, como santos, foi que na noite de 9 para 10 de julho de 1860 eles preferiram morrer a negar sua fé em Jesus Cristo.
Com o pragmatismo contemporâneo, podemos pensar que eles poderiam ter sido mais astutos. “Ora, falamos para esses malucos que nos convertemos ao islamismo, as coisas esfriam, e depois fugimos com nossas famílias. Ou eles acabam derrotados. E terá sido apenas uma mentirinha; não deixamos de acreditar em Jesus”.Tivessem agido assim, ou de forma parecida, provavelmente teriam se salvado.
Agindo como agiram, enviaram uma mensagem que atravessou dois séculos e um milênio. Chegou até nós após 164 anos. Talvez somente este ato de fé tivesse tamanha força. De certa forma eles estão falando diretamente para todos que, hoje, estejam dispostos a ouvir: “Nossa fé em Jesus Cristo é importante. E nós achamos que vale a pena morrer por ela”. Pensando melhor, se eu estou ouvindo, tanto faz se sou mesmo seu sobrinho bisneto.
Paulo Bernardelli Massabki é arquiteto.
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