| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

A sociedade ainda não acordou para o risco de se aprovar o relatório do deputado João Campos sobre o novo Código de Processo Penal que tramita, sem alarde, na Comissão Especial na Câmara dos Deputados. O parecer do parlamentar introduziu no texto os princípios da PEC 37 – que a sociedade brasileira já havia rechaçado quatro anos atrás – e joga uma pá de cal em todas as investigações atuais e futuras de crimes de corrupção e tráfico.

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Se as bases do relatório de João Campos ou a PEC 37 estivessem em vigência, não teríamos operações como a Lava Jato ou a Acrônimo, porque elas retiram o poder investigatório do Ministério Público, assim como atribuem, de maneira exclusiva, a autoridade policial ao delegado. As repercussões práticas de tal redesenho é que somente o detentor do cargo de delegado terá o poder de conduzir as investigações no ritmo que lhe convier. Criam-se aí condições adicionais para agravar a já pandêmica impunidade na esfera processual e para a falta de efetividade das investigações. Abre-se uma porta perigosa para as organizações criminosas se instalarem definitivamente nas esferas pública e privada, ao fomento indireto às facções criminosas e ao aumento exponencial da sensação de insegurança no país.

Na atual estrutura, é o MP que detém a dominus litis, que é o poder de apresentar a denúncia em juízo, ou seja, de compilar as provas do crime e apresentar ao juiz. O que o relatório do deputado João Campos pretende é instituir a figura de um intermediário obrigatório. O Ministério Público estará impedido de investigar diretamente. João Campos reforça o bordão segundo o qual, em se tratando de Brasil, é perigoso mexer nas estruturas sem um estudo ou sem ter por base exemplos de outros países. Importante lembrar que o Congresso Nacional é dominado por interesses corporativistas que, muitas das vezes, não coadunam com aquilo de que a sociedade necessita. A depender do deputado-delegado, a segurança pública caminha para um trágico fim, porque o relatório não inova nem aperfeiçoa. Ao contrário, aprisiona as instituições criadas para combater o crime.

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Falta pouco para o Brasil se tornar uma Colômbia dos idos de Pablo Escobar

Diante da apresentação desse relatório, fica a pergunta: por que não temos uma segurança pública como a dos Estados Unidos, do Chile ou de Portugal? Nunca teremos níveis de eficiência policial desses países enquanto nosso modelo de investigação tiver como objetivo “fabricar papel”. Nosso modelo é burocrático e feito para não funcionar. Nem o próprio parlamentar é capaz de desmentir o fato de que o inquérito policial tornou-se judicialiforme, ou seja, cada vez mais lento, com atos que deveriam ser consignados só em juízo. O retrabalho é a marca dentro do inquérito policial; isso torna o procedimento administrativo extremamente lento, moroso e sem o efeito desejado: a punição do criminoso e a devolução (ou ressarcimento) do bem.

Um dos principais efeitos nocivos à população brasileira pode se exemplificar no que se vê dia a dia na televisão. Consideremos o furto simples de uma bicicleta na garagem. Nos países em que a segurança pública funciona, o policial vai até o local do crime e inicia imediatamente as investigações sem burocracia. Busca indícios de autoria e materialidade. Provas técnico-científicas. No Brasil, não. Quem sofreu a agressão terá de ir a uma delegacia de polícia e sair com um calhamaço de papel sem que a investigação comece.

Este não é um detalhe qualquer: se a investigação é ato contínuo à agressão, será mais fácil à autoridade policial buscar por provas materiais do delito, como as impressões digitais, pegadas, eventual vídeo registrado por uma câmera de comércio próximo, de pessoas que passaram com a bicicleta. Ou seja, a identificação do criminoso será logicamente mais ágil. Como isso não é o que ocorre na grande maioria dos casos, convivemos com estatísticas vexatórias, menores de 5% no caso de furto simples, chegando a quase zero em algumas localidades do Brasil. A burocracia significa retrabalho, o que se pode verificar nas oitivas do inquérito policial. Não basta o relatório do policial que investiga o caso. É preciso que o depoente repita sua história para o delegado de polícia, para o escrivão na delegacia e anos depois, em juízo, onde realmente o que ele disser terá validade jurídica. Fato que gera ineficiência na persecução criminal brasileira.

Leia também: Onde os heróis não têm vez (artigo de Diego Pessi, publicado em 1.º de abril de 2018)

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Leia também: O brasileiro e os bandidos (editorial de 4 de novembro de 2016)

Esse quadro ganha contornos dramáticos quando o assunto passa ser o de perda de vidas humanas. Nós somos o país com o maior número de homicídios em número absoluto. Tivemos mais de 60 mil homicídios no ano passado. Matamos mais do que na guerra da Síria, que teve cerca de 43 mil homicídios. Temos um absurdo número de estupros no nosso país. Isso sem contar o sem-número de roubos, furtos e outros crimes que não são solucionados no nosso país.

Saímos de 19 homicídios por 100 mil habitantes há cerca de oito anos e estamos com 29 homicídios por 100 mil habitantes, segundo a ONU. Isso, por si só, bastaria para mostrar que não existe uma resposta efetiva do Estado a todos esses crimes. Nós estamos numa espiral de violência crescente e precisamos urgentemente buscar soluções viáveis.

A primeira seria o investimento em prevenção, até dez vezes mais barato que a investigação no pós-crime. A nossa prevenção é precária, tende a zero. Não existe investimento em urbanismo, contraturno de educação, esporte e cultura para reinserir parcela da população à sociedade, oferecendo oportunidades e condições de empregabilidade. Precisamos cultivar a cultura de polícia de proximidade, como prestação de serviço, com aquele policial que conhece todos da região e é o responsável pelo mapeamento e alimentação de dados.

Passando para o pós-crime, a fase de investigação, é imprescindível que ela seja desburocratizada. Celeridade no procedimento investigativo, além de prestigio à real meritocracia. No Brasil, a meritocracia é disfuncional e pode ser comparada a uma fotografia. Ou seja, o Estado entende que, após o cidadão passar em um concurso público para chefe, ele está legitimado e preparado para exercer a chefia pelos próximos 35 anos de carreira. Diferentemente do Brasil, a meritocracia deveria ser comparada a um filme. O cidadão teria de provar todos os dias que é o mais preparado, competente e capaz, como nas carreiras de segurança pública em Portugal, por exemplo. Resultado disso: índice de eficiência de 90% por lá.

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Nunca teremos altos níveis de eficiência policial enquanto nosso modelo de investigação tiver como objetivo “fabricar papel”

Deveria ser algo simples. O melhor funcionário dos crimes cibernéticos, por exemplo, é aquele com bacharelado em Informática com conhecimento em investigação na área, que se adquire após anos de experiência. O chefe dos crimes financeiros e tributários pode ser um bacharel em Economia ou em Contabilidade que tenha tido experiências de anos em investigação nesse campo.

No que diz respeito à parte processual penal, devemos mirar os modelos com sucesso comprovado. A Alemanha limita o número de recursos nos processos em concreto, a fim de evitar a única estratégia de atingir a prescrição ou provocar uma eventual nulidade no processo penal.

Por fim, a última etapa da persecução penal. É necessário que se faça uma reanálise geral da nossa execução penal. O trabalho das pessoas recolhidas ao sistema prisional tem de ser o objetivo. A verdadeira ressocialização e o acesso aos benefícios, como “saidões”, progressão de regime, visita íntima e outros devem passar, obrigatoriamente, pela comprovação da contraprestação por meio do trabalho.

Falta pouco para o Brasil se tornar uma Colômbia dos idos de Pablo Escobar. O relatório apresentado dará seu empurrãozinho para que esse cenário de terror se concretize no país.

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Flávio Werneck, policial federal, bacharel em Direito e mestrando em Criminologia na Universidad de la Empresa (Montevidéu), é presidente do Sindipol-DF e vice-presidente da Fenapef.