A pluralidade de experiências religiosas no Brasil tem colocado, para os estudiosos da religião, o desafio de compreensão a partir de elementos que ultrapassem a interpretação exclusivamente religiosa e alcancem os chamados fatores sociais. Um dos que defende essa abordagem é o norte-americano Richard Niebuhr, que, ao estudar as origens sociais das denominações cristãs, afirmou que “o que é verdade em ética e política é verdade em teologia”. Da mesma forma, Carlos Rodrigues Brandão, ao estudar as manifestações da diversidade religiosa brasileira, concluiu que o “sagrado é uma das dimensões que o político ocupa na formação social para preservar-se a si próprio como uma forma de poder, e para preservar o poder da ordem profana a que serve e de onde retira a sua própria fração de poder religioso”.
Tendo isso em vista, pode-se dizer que a religião é a metafisica do poder. Ela nasce de baixo para cima. Assim, fica mais fácil à construção de uma estrutura de poder que confunde ou se mistura facilmente com o discurso de fé com os poderes terrenos. O sagrado não pode somente comandar uma realidade dita espiritual, seu controle deve se fazer presente no material. Como isto acontece? Com a presença da igreja que se diz porta-voz deste Deus que anseia criar um ambiente teocrático delegando autoridade para pessoas bem específicas que se tornam seu oráculo entre os homens.
Estamos diante de tradição política. Getúlio Vargas, cético ao extremo, inaugurou o Cristo Redentor no dia de Nossa Senhora Aparecida. Isso não é Bíblia, trata-se de O Príncipe de Maquiavel.
Como isso está no campo da conquista, todo discurso torna-se beligerante. Jargões comuns como: vamos conquistar, temos que triunfar, nascemos para reinar, marchemos contra nossos inimigos criam uma catarse quase que generalizada de que a missão é destruir todos os que se opõem ao estabelecimento deste reinado terreno.
Numa pesquisa simples no Google sobre músicas de guerra gospel, é possível ver uma infinidade sobre o assunto, canções, por exemplo: Dias de guerra (Valesca Mayssa), Soldado de guerra (Elaine de Jesus), Varão de guerra (Pr. Melvim), Estou em guerra (Ariely Bonatti), Homem de guerra e Nosso general (Adhemar de Campos). Enfim, a lista é pra lá de extensa. Há um frenesi gospel viver em guerra, encontrar inimigos e discursar com raiva. Convenhamos, não encontramos absolutamente nada disto nos quatro evangelhos que relatam a biografia de Jesus, filho de Deus.
A igreja evangélica comumente se aproxima do militarismo. Muitas denominações usam até fanfarras e bandas marciais, que incluem muitos policiais militares como tocadores de instrumentos. O linguajar evangélico também é marcado pelo tom marcial e agressivo. Isso é claramente percebido além das músicas cantadas congregacionalmente e nas mensagens pregadas nos púlpitos – há sempre um inimigo externo a ser derrotado.
Sempre existiu uma atração dos evangélicos pelo militarismo. Isto é historicamente demonstrada pelo apoio à Ditadura Militar, entre os anos de 1964 a 1985 no Brasil. A Igreja Presbiteriana do Brasil, apoiou o Golpe de 1964. Por exemplo, um pastor presbiteriano perseguiu aqueles que pensavam diferente e que tinham um pouquinho mais de sensibilidade social, os entregando ao regime. Outro pastor, do Rio de Janeiro, declarou abertamente seu apoio à ditadura e ao militarismo e denunciava a todos que não apoiavam o regime, principalmente os membros de sua igreja. O Rubem Alves, inclusive, na época era pastor presbiteriano, foi entregue pelos próprios amigos e teve que se viver exilado nos Estados Unidos. No meio batista, um pastor de Niterói entregou muita gente aos militares. Penso que o atual encantamento dos evangélicos pelas armas é apenas a manifestação pública da natureza bélica que sempre tiveram.
Quando esta metafísica do poder chamada religião ganha espaço, o que ela mais faz é vista grossa para as maldades e atrocidades ao seu entorno. Não fica bem questionar o Executivo, uma vez que foi ele que concedeu oportunidades, privilégios, regalias, isenções financeiras e visibilidade. Os pastores sabem que, no fundo, Bolsonaro não é um homem religioso de fato, mas também é útil a eles.
Estamos diante de tradição política. Getúlio Vargas, cético ao extremo, inaugurou o Cristo Redentor no dia de Nossa Senhora Aparecida. Isso não é Bíblia, trata-se de O Príncipe de Maquiavel. A biografia familiar de Bolsonaro o afasta de um defensor da estabilidade familiar e do casamento permanente. Para mim, ele cumpre o modelo do capítulo 18 do Príncipe: parecer todo piedade para fins de controle político. Existem religiosos autênticos e sinceros, mas eles raramente estão na política.
Um Brasil “hegemonicamente evangélico” já existe e é o que está aí posto: cada vez mais violento, obtuso, preconceituoso. A única coisa que pode mudar esse quadro é a instrução, coisa que nem todos querem. Portanto, o que veremos no futuro do Brasil de maioria evangélica, é apenas mais do mesmo.
Christopher Marques é mestre Teologia pela PUC-SP, pós-graduado em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade e membro do grupo Coalização Inter-Fé. É autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja”, “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” e “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.
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