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Cientistas políticos que assessoram partidos e parlamentares costumam dizer que nosso sistema político funciona bem, garantindo a governabilidade. De certa forma, eles têm razão: o sistema exibe consistência interna e serve aos interesses gerais dos políticos. É por isso que, no debate da reforma política, o Congresso opera com cuidado extremo. A república dos políticos não destruirá a si mesma só porque perdeu quase toda a legitimidade.

Temos 32 partidos registrados no TSE. A multiplicidade partidária não reflete a diversidade de correntes doutrinárias do país, mas acomoda todas as frações de nossa elite política. Os partidos oficiais não precisam do apoio ativo de parcelas do eleitorado, pois são sustentados por recursos públicos, nas formas do Fundo Partidário e do tempo “gratuito” de propaganda partidária. Diante das incertezas jurídicas sobre a continuidade das doações eleitorais por empresas, o Congresso votou a triplicação das verbas do Fundo Partidário, que foi chancelada por Dilma Rousseff. Nessa iniciativa, os partidos de oposição somaram-se à base governista.

Alguém precisa dizer às oposições que o Brasil não cabe na redoma dourada de Brasília

A Câmara aprovou uma falsa cláusula de barreira, que mantém o financiamento público de 28 dos partidos oficiais. Também negou-se a vetar as coligações em eleições proporcionais, que fraudam a vontade dos eleitores mas são cruciais para a existência de partidos sem representatividade. Por meio das coligações, partidos sem votos obtêm cadeiras no Congresso, assegurando recursos do Fundo Partidário. Em troca, concedem aos grandes partidos seu tempo de propaganda nos meios de comunicação. Além disso, como um bônus, o negócio da criação de partidos oferece alternativas para circundar a regra da fidelidade partidária. O governo tem um ministro, Gilberto Kassab, que simula desempenhar funções administrativas mas, de fato, opera como despachante no balcão do TSE consagrado à fabricação de legendas de aluguel.

A raiz lógica do sistema político encontra-se fora dele, na captura da administração pública pela elite política. No Brasil, não se completou o percurso histórico de constituição de uma burocracia pública profissional regida pela meritocracia. Nossa elite política travou o processo antes de sua conclusão, reservando para si os escalões superiores da máquina estatal. As dezenas de milhares de cargos preenchidos por indicação política, na administração direta e nas estatais, são os alvos de uma pilhagem permanente conduzida por meio dos partidos. As oposições parlamentares tendem ao encolhimento, pois os partidos existem, essencialmente, como veículos para conduzir os políticos aos postos de poder na máquina estatal. Nessa burocracia pública capturada pelos partidos estão as fontes da corrupção endêmica que enlaça a elite política ao alto empresariado de nosso capitalismo de estado.

O lulopetismo não inventou o sistema político brasileiro. A Justiça Eleitoral, instrumento de oficialização de partidos, nasceu com Getúlio Vargas, em 1932. O Fundo Partidário foi criado pela ditadura militar, em 1965. Mas o sistema atual emanou da Constituição de 1988, que recombinou instituições prévias de modo a favorecer o conjunto da elite política. Os governos de Lula, entretanto, conduziram o sistema às suas mais extremas consequências. FHC governara com base em uma coalizão coerente, nucleada pela aliança PSDB/PFL e ancorada num programa de reformas econômicas de mercado. Lula e sua sucessora, pelo contrário, estabeleceram coalizões incongruentes, que conectam a esquerda à direita. O preço da governabilidade foi uma extensão inédita das redes de corrupção. Nesse passo, a corrupção tradicional, fragmentária, deu lugar ao assalto partidário centralizado e sistemático dos cofres públicos.

Só se fala, hoje, em reforma política porque o sistema chegou ao umbral do colapso. Nas Jornadas de Junho, em 2013, e nas manifestações anti-Dilma de março e abril emergiu uma espiral de indignação que atinge, diferenciadamente, toda a elite política. O foco concentrou-se no PT, que é visto, acertadamente, como o guardião principal da fortaleza. Os partidos de oposição reagiram entregando tacitamente as chaves da agenda parlamentar para Eduardo Cunha, a sentinela disponível na hora da crise. Tanto o PSDB quanto o PPS e o PSB lavaram as mãos, preferindo desempenhar papéis periféricos na farsa da reforma política a denunciar implacavelmente um sistema organizado de privatização político-partidária do Estado.

Cunha navega na crise de olhos postos nos interesses mais amplos da elite política. Na “reforma” que ele conduz, a única mudança de fundo é a coincidência geral das eleições, o que significaria uma alteração crucial do calendário político: a voz dos eleitores só seria ouvida a cada quatro anos. Desde o encerramento do ciclo militar, eleições bienais ajudam a dissolver tensões sociais, dirigindo as expectativas para o palco da política institucional. Se referendado pelo Senado, o novo calendário isolará ainda mais a elite política do eleitorado, protegendo as redes de intercâmbio dos partidos com o governo e o alto empresariado. Nessa hipótese, em longos ciclos de quatro anos, a república dos políticos permanecerá imune ao escrutínio das urnas. Os partidos de oposição não parecem incomodados com tal regressão.

As três grandes crises de legitimidade da história recente do país encontraram saídas políticas positivas. No ocaso da ditadura, as campanhas pelas eleições diretas e a Constituinte ofereceram um rumo democrático. O desgoverno de Collor de Mello foi encerrado pelo impeachment, que restaurou a confiança nas instituições. A crise da hiperinflação foi solucionada pelo Plano Real, que restaurou a governabilidade. Hoje, porém, assiste-se a um divórcio profundo entre a elite política e as ruas. Alguém precisa dizer às oposições que o Brasil não cabe na redoma dourada de Brasília.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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