Não é de hoje que o sistema eleitoral norte-americano é alvo de críticas e reparos. Sua complexa estruturação decorre não apenas do esquema institucional inscrito no texto constitucional, mas também da experiência política que se seguiu à sua entrada em vigor. Em The Failure of the Founding Fouthers, obra publicada em 2005, Bruce Ackerman, renomado professor da Faculdade de Direito da Universidade de Yale, relaciona diversos fatos políticos de relevância constitucional que completariam o momento fundacional da organização política dos Estados Unidos. Entre esses fatos, destacam-se aqueles ocorridos durante a eleição de Thomas Jefferson como presidente em 1801. Amparado em expressivo conjunto de fontes históricas primárias, o autor esclarece relevantes aspectos relacionados à votação no colégio eleitoral e à sua apuração, que contribuem à compreensão do modelo político e das respostas constitucionais às suas supostas imperfeições.
A detalhada análise desenvolvida por Ackerman sobre essa problemática eleição lança luzes sobre o papel do presidente do Senado norte-americano no processo de apuração dos votos dos delegados (Electors) que integram o colégio eleitoral, a quem compete, nos termos da Constituição, escolher o presidente e o vice-presidente. Segundo o artigo 2.º da Constituição dos Estados Unidos, “o presidente do Senado abrirá, na presença do Senado e da Câmara dos Representantes, todos os certificados e os votos serão, então, contados”. Como é sabido, estatui, ainda, o mesmo texto constitucional que o vice-presidente dos Estados Unidos exerce a presidência do Senado.
Na eleição de 1801, Thomas Jefferson, além de ser o candidato com maior popularidade, ocupava o cargo de vice-presidente e, portanto, presidia o Senado. Ou seja, cabia-lhe, nessa condição, cumprir a missão constitucional de abrir todos os certificados e promover a contagem dos votos dos delegados. Situação similar já havia ocorrido na eleição anterior em que John Adams era o vice-presidente, presidente do Senado e, após a contagem dos votos, o presidente eleito dos Estados Unidos.
O mesmo artigo 2.º da Constituição norte-americana estipula formalidades que devem constar do documento que registra os votos dos respectivos delegados. Devem eles, segundo o preceito constitucional, “fazer uma lista de todas as pessoas que receberam votos e do número de votos para cada”. Acrescenta, ainda, que “essa lista deve ser assinada e certificada” pelos delegados e, subsequentemente, “transmitida selada à sede do governo dos Estados Unidos, dirigida ao presidente do Senado”. Ademais, a legislação vigente à época, segundo Ackerman, exigia também um segundo documento a ser emitido pelo governador do respectivo estado-membro, que certificasse o nome dos delegados. Determinava-se, ainda, sua anexação ao primeiro documento, que, nos termos da Constituição, registra os respectivos votos.
Em outro texto, assinalam Bruce Ackerman e David Fontana que, às vésperas da eleição de 1797, comentava-se, inclusive pelos jornais, que os quatro votos oriundos do estado de Vermont continham irregularidades. Nenhum vestígio de deficiência ou irregularidade foi percebido, porém, quando John Adams e seus assistentes de apuração (tellers) abriram e verificaram os certificados e o restante da documentação advindos de Vermont. Sensível aos comentários que cercavam o caso, Adams, na condição de presidente do Senado, “concedeu aos membros do Congresso”, conforme apontam Ackerman e Fontana, “uma oportunidade formal de questionar os quatro votos de Vermont antes de anunciar que ele ganhara a eleição pela diferença de três votos à frente de Jefferson”. Em face do silêncio reinante, ele, então, se declarou o novo presidente dos Estados Unidos.
Distinto foi o caso da eleição de 1801. Naquela oportunidade, as suspeitas de ilicitude recaíam sobre os votos oriundos do estado da Georgia. Consoante registra Ackerman, havia diversas inconsistências formais. Não se encontravam as certificações e assinaturas exigidas constitucionalmente, bem assim a documentação continha-se numa única folha de papel, “não em duas como apresentado por qualquer outro estado”. Em seu livro, Ackerman faz constar – para que sejam visualizadas as diferenças e, portanto, as irregularidades – fotografias dos documentos que formalizam os votos dos delegados da Geórgia em 1796 e em 1800, bem como os advindos de outros estados na mesma eleição de 1800. O documento oriundo da Geórgia, conclui o professor de Yale, “claramente falha em satisfazer os requisitos estabelecidos pela Constituição”.
Os votos dos quatro delegados da Geórgia foram para os candidatos republicanos Thomas Jefferson e Aaron Burr. Caso não fossem computados, Jefferson e Burr alcançariam apenas 69 votos cada. Com 138 delegados, a vitória no colégio eleitoral somente seria conquistada, à época, com 70 votos. Ou seja, os cinco candidatos que obtiveram votos nessa eleição – Thomas Jefferson, Aaron Burr, John Adams, John Jay e Charles Pinckney – participariam, nesse caso, do certame eleitoral contingente perante a Câmara dos Representantes.
As inconsistências, segundo a cuidadosa pesquisa de Ackerman, não passaram despercebidas. Sua descoberta foi veiculada nos jornais da época, que, inclusive, mencionavam o alerta dos assistentes de apuração de que “havia alguma informalidade” na documentação. Thomas Jefferson, como presidente do Senado, estava a par da situação. Outros relatos e documentos também dão conta do episódio, ainda que não se encontre referência disso nos registros oficiais constantes dos Anais do Congresso. A atitude levada a efeito por Jefferson, ante essa difícil situação, foi descrita por Ackerman nos seguintes termos:
Jefferson era perfeitamente livre para chamar a atenção do Congresso sobre o problema antes de tomar uma decisão de sua cadeira. Ou ele poderia tomar uma clara decisão sobre os votos da Geórgia para, então, convidar o Congresso a superá-la caso dela discordasse. Não fez qualquer dessas coisas. Ele simplesmente contou os votos da Geórgia para Jefferson e Burr como parte da apuração total (...).
Cabia a Thomas Jefferson proceder, nos termos da Constituição, à contagem dos votos. Em sua decisão final, conforme assinala Ackerman, “assumiu a responsabilidade de assegurar a validade da votação da Geórgia, apesar da clara violação dos requisitos impostos pela Constituição e da sua questionável autoridade”. Assim, acabou por excluir seus adversários federalistas da eleição contingente perante uma Câmara dos Representantes de maioria federalista.
Após analisar circunstâncias e posicionamentos que indiciam a coerência e a boa-fé de Jefferson, Ackerman afirma parecer “muito claro que a decisão de 1801 deve servir como precedente”. Ao exercer sua autoridade como presidente do Senado e validar os votos oriundos da Geórgia, emitiu decisão com efetivo valor jurídico, sem qualquer objeção de qualquer membro das casas do Congresso norte-americano. Sua decisão “não apenas lançou luzes sobre questão deixada em aberto pelo texto constitucional original, mas também resolveu um problema potencialmente explosivo obtendo consentimento público”. Em face disso, questionam Ackerman e Fontana: “O que mais se pode pedir de um precedente jurídico?”
Em 1887, foi aprovado o Electoral Count Act (3 US Code §15), que oferece parâmetros para eventuais problemas no processo de apuração dos votos dos delegados. Contudo, não afasta, segundo Ackerman, o poder do presidente do Senado e o “precedente Jefferson”. Cogita o referido regime legal do recebimento de mais de um relatório (return) de votação do mesmo estado. Nesse caso, cabe ao presidente do Senado, segundo a lei, consultar as casas legislativas sobre qual dos relatórios enviados deve ser computado. A questão remanesce, caso as casas discordem sobre a questão. Ante tal situação, deve o presidente do Senado contar aquele que estiver certificado pelo Executivo do estado. Sobre o caso, o próprio Ackerman indaga: “e se ‘o Executivo’ assina ambos os relatórios ou se diferentes membros do Poder Executivo assinam relatórios diferentes?” Aludindo à controvérsia sobre os votos da Flórida na eleição de 2000, Ackerman e Fontana especularam sobre essa possibilidade a partir da situação de haver, à época, naquele estado, um procurador-geral (Attorney General) democrata e uma secretária de Estado republicana.
A esse propósito, Bruce Ackerman sugere que Al Gore, na condição de presidente do Senado em 2001, poderia ter sido – em razão do precedente de Thomas Jefferson – mais audacioso. Sobre o episódio, propõe o autor a seguinte análise:
Em 2000, por exemplo, a Constituição confiou a Al Gore, servindo como presidente do Senado, a tarefa de contar os votos dos delegados em sua disputada corrida presidencial com George W. Bush. A oportunidade de Gore ocorreu em 6 de janeiro de 2001, três semanas depois da decisão da Suprema Corte de dezembro que reduziu a apuração da votação a um ritual vazio. Mas, quando a próxima crise do colégio eleitoral acontecer, a corte pode não ser tão intervencionista e caberá ao presidente do Senado, em colaboração com o Congresso, a missão de tomar uma decisão final de uma disputada eleição. Nesse ponto, as ações de Thomas Jefferson como presidente do Senado em 1801 servirão como um precedente crucial.
Preferiu Al Gore, como se sabe, apostar suas fichas numa decisão favorável da Suprema Corte. Acabou por não seguir o distante precedente de Thomas Jefferson e se engajar numa solução política de índole congressual. Novamente, em 2020, vive-se clima de desconfiança em face das recentes eleições presidenciais. Segundo se noticia, denúncias sobre fraudes são ajuizadas em certos estados. Em alguns deles, o Executivo é dominado por republicanos. Resta saber se, diferentemente de Al Gore, Mike Pence cogita fazer prevalecer o precedente de Thomas Jefferson e as lições de Bruce Ackerman.
Roger Stiefelmann Leal, doutor em Direito do Estado e procurador da Fazenda Nacional, é professor doutor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e foi Visiting Scholar na Harvard Law School.
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