Há quem pense que a história é mestra da vida, ainda que uma mestra débil e sempre às voltas como baixo rendimento dos seus discípulos. De qualquer modo, embora não tenha lá muito êxito na missão hercúlea de orientar os humanos, o saber abençoado por Clio serve para muitas e grandes coisas, entre as quais evitar que atribuamos ineditismo e mostremos surpresa diante de ocorrências (humanas e naturais) e catástrofes que de inéditas não têm nada. Em determinadas situações, saber que o que vemos hoje muitos outros viram outrora, muda tudo.
Catástrofes naturais, por exemplo. Desde muito cedo, os humanos, quando atingidos por uma delas – e são muitas – têm um impulso irresistível a tomá-la como inédita e a interpretá-la como um tipo qualquer de punição (dos deuses, da mãe terra, do cosmos, dos duendes e fadas ofendidos etc.). É evidente que, neste mundo particularmente catastrofista em que vivemos, as gigantescas inundações no Sul do país suscitaram tais sentimentos. Por sorte, graças aos bancos de dados on-line e às redes sociais, almas ponderadas debruçaram-se sobre a história recente do estado e resgataram, dos jornais de 1941, uma tragédia similar, ocorrida no mesmo local e mês. Outros, muitos outros, puxaram pela memória e lembraram-se de terem vivenciado catástrofes aparentadas ao longo das últimas duas, três décadas do século XX.
Mas tais lembranças são coincidências e distorções da memória ou sinais claros de um evento recorrente, indicativo de um padrão? Aqui, embora distantes da precisão dos cientistas do clima, os historiadores, os historiadores das catástrofes naturais, têm uma palavra a dizer. Quem tiver a curiosidade de passar os olhos pelos jornais, revistas, almanaques, anuários e atas da câmara da província de São Pedro do Rio Grande Sul, editados entre 1819 e 1940 –– disponíveis on-line na hemeroteca da Biblioteca Nacional ––, rapidamente perceberá que as catástrofes naturais e as águas (das chuvas, das enchentes, dos rios, das marés etc.), desde muito cedo, ocuparam um lugar central na vida dos sulistas. São incontáveis os documentos que tratam da altura dos rios, das enchentes, das marés, dos caminhos e das pontes da província, especialmente das pontes que, com uma frequência irritante, eram carregadas pelas enchentes – mesmo aquelas construídas com esmero, respeitando a altura máxima alcançada pelo rio durante as cheias –, impossibilitando o ir e vir de coisas e gentes.
Em geral, são notas breves, relatando problemas pontuais e corriqueiros, como esta, publicada em 1853, acerca das enchentes do Gravataí: “As águas do rio Gravataí engrossadas no inverno pelas copiosas chuvas, não se podendo conter no leito natural, extravasam-se e deixam alagadas as suas margens em grande extensão. Junto à ponte da Cachoeira, distante 3 léguas desta capital, e na sua principal e mais frequentada estrada, faz o rio um espraiamento que por meses se torna de incomodo e perigoso trânsito”.
Ou esta outra, de 1857, em que são tecidos comentários sobre a resistência de uma ponte do rio Jacuí, construída e reconstruída inúmeras vezes: “As extraordinárias chuvas e enchentes, acontecidas em fins de outubro e princípio de novembro do ano passado ofereceram ocasião para novos exames sobre a segurança dessa obra”.
Ou, ainda, esta, de 1878, relatando mais uma estação em que as chuvas espalharam, aqui e ali, pequenas misérias pela província: “Em consequência das copiosas chuvas havidas nos primeiros dias do mês de junho do ano findo, ficaram inundadas as ilhas fronteiras a esta capital e diversas povoações a oeste de São Leopoldo”.
Essa série monótona de notícias sobre chuvas, alagamentos copiosos, catástrofes naturais, pontes e casas arrastadas, lavouras perdidas e caminhos intransitáveis, que se repetem mês após mês, ano após ano, adquirem, no entanto, em certos anos e estações, outro tom, um tom mais consternado, indicando que, mesmo para gente habituada a conviver com os problemas suscitados pelo excesso de águas, a natureza, daquela vez, exagerara. É o que se nota, por exemplo, numa matéria publicada na edição de agosto de 1839, do jornal O Povo, onde se lê que as chuvas da estação fria tinham sido “extraordinárias” – adjetivo que, em algumas circunstâncias, substitui o “copiosas” –, que os rios estavam todos acima de suas máximas históricas, que muitas lavouras e casas tinham sido destruídas e que os caminhos da província se encontravam intransitáveis. A situação era tal que, segundo o tenente José Álvares de Moraes, nem mesmo as tropas do Exército podiam se deslocar, pois as vias terrestres tinham desaparecido e os “imensos rios que fertilizam este solo abençoado” estavam muito altos, impedindo a navegação.
O ano de 1868 também foi excepcional, marcado pela persistência das precipitações “extraordinárias” ao longo das quatro estações; ao menos é o que vem escrito num relatório do presidente da província de 1869: “Não há memória de tão seguidas e copiosas chuvas como as das quatro estações últimas; inverno, primavera, verão e outono foram tão abundantes de chuvas, que todas as indústrias têm sido e continuam a ser grandemente prejudicadas; além dos males diretamente causados à agricultura e à criação dos gados, luta a província com o grande embaraço das comunicações, porque as suas estradas, que todos os anos são, no verão e outono, consertadas pelo seu inspetor geral, o sol, não receberam nestes últimos tempos esse grande benefício da Providência Divina e estão quase intransitáveis; algumas, principalmente as das serras, são verdadeiros precipícios e têm produzido a morte de grande número de animais cavalares, muares e vacuns dos transeuntes, que, forçados por urgente necessidade, se sujeitam a percorrê-las”.
Em 1872, os jornais voltam a tratar das catástrofes, mencionando as “chuvas torrenciais” e de uma “grande enchente que flagelaram a província durante o inverno”. É, no entanto, ao longo do outono-inverno de 1885, que a situação parece ter alcançado patamares realmente dramáticos. O Anuário da Província do Rio Grande do Sul, na sua edição daquele ano, resumiu a situação nos seguintes termos: “De a muitos anos a esta parte não se tem sentido nesta província inverno tão rigoroso como o de 1885, quer pela grande quantidade de chuvas, quer pelo abaixamento excepcional da temperatura. Geralmente os invernos húmidos são pouco frios e os invernos frios pouco chuvosos. Mas na estação que vai fechar-se, nós tivemos simultânea e constantemente, como exceção a esta regra, muitas chuvas e muitos frios. Não levando em conta alguns poucos dias bons do mês de maio, pode dizer-se que choveu constantemente desde o começo de abril até dia 10 de agosto, em que o tempo começou a endireitar-se. (...) Neste ano, de abril a agosto, contamos nada menos de seis enchentes, algumas delas com inundações, e mesmo na capital, por duas vezes, as águas alagaram os bairros do Menino Deus, Azenha e Caminho Novo, interrompendo o trânsito entre eles e a cidade”.
Um quinquênio mais tarde, o mesmo almanaque, na sua edição de 1890, retorna ao tema das catástrofes e traz uma descrição pormenorizada das enormes chuvas que mais uma vez atingiram a província durante aquele inverno, chuvas que deixaram um rastro de destruição atrás de si: “As águas do São Gonçalo consideravelmente avolumadas pelas chuvas ultimamente caídas e sobretudo represadas por fortíssimo vento, produziram uma inundação como não há notícia de outra igual há 30 ou 40 anos. Em Pelotas, a água excedeu a linha superior do cais e inundou quase toda a praça Domingos Rodrigues e rua Conde de Porto Alegre, invadindo o gasômetro, que ficou impossibilitado de funcionar; viu-se assim a cidade privada de iluminação desde o dia 12 de Junho até 11 de Julho. Na margem direita, a inundação tomou proporções verdadeiramente extraordinárias, cobrindo o campo numa extensão de 6 a 7 quilômetros, e em alguns pontos de muito mais. O leito da estrada de ferro do Rio Grande a Bagé ficou coberto pelas águas até ao quilômetro 44. (...) A correnteza do rio tornou-se vertiginosa, a ponto de, no dia 11 de Junho, não poder o paquete Rio Pardo dar volta, sendo obrigado a fazer de popa o trajeto desde o porto de Pelotas até em frente à charqueada dos herdeiros de Felisberto Braga. A enchente fez-se igualmente sentir assustadora no Arroio Grande, Chasqueiro, Liscano, Santa Isabel e Jaguarão; a vila de Artigas ficou toda inundada, e aí subiram as águas 3 metros acima das enchentes normais”.
“No Rio Grande também cresceram as águas, cobrindo o lugar denominado Macega, e atingindo, na noite de 15,o gasômetro, onde felizmente não penetraram graças às providências prontamente tomadas. Na noite seguinte, porém, as águas elevaram-se à maior altura e as obras feitas na véspera já não eram suficientes para impedir que elas invadissem as fornalhas e atingissem as retortas. Foi preciso desenvolver a maior atividade e aumentar a parede que as águas começavam a galgar”.
Há ainda menções a chuvas extraordinárias e enchentes “como nunca vistas” em 1926, 1928 e 1936; nada que destoe do que se viu até aqui, salvo pelo crescente aumento de danos. Podemos, pois, retornar à questão inicial: coincidência ou padrão? A história da província, ao menos aquela registrada nos jornais, relatórios administrativos, almanaques, anuários e outros impressos, parece indicar um padrão, isto é, parece indicar que, em maio de 2024, a natureza, com a impassibilidade que lhe é própria – nem compaixão, nem vingança –, fez o que faz, de tempos em tempos, há pelo menos dois séculos: despejou, num par de dias, um mundo de água sobre o sul do país, muito mais água do que comumente despeja sobre a região, como aconteceu em outras catástrofes anteriores. A novidade é que essas “águas extraordinárias” encontraram pela frente muito mais gentes, animais, lavouras e edificações do que em 1839, 1868, 1872, 1885, 1926, 1928, 1936 e 1941. E isso fez toda a diferença.
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.
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