Depois de ler a ampla reportagem sobre Curitiba "Road to Curitiba" que o jornalista Arthur Lubow publicou no New York Times do último 20 de maio, registro as observações, coisas que vi, e algumas das quais participei como jornalista, na revolução urbana que Jaime Lerner fez a partir de 1971. Respeito os discordantes; não escondo que me impressionei desde a primeira hora da escolha do prefeito que então tinha 35 anos. E comecei a conhecê-lo fundamente quando, com Gilberto Ricardo dos Santos e Luiz Carlos Cunha Zanoni, fui encarregado de escrever o texto básico, biográfico, descrevendo à cidade o prefeito escolhido pelo então governador Leon Peres e depois sacramentado pela Assembléia. Fizemos também o seu discurso de posse. O encontro foi no velho edifício Hauer, na Praça Osório, onde ele tinha escritório. Ele estava com Fany, tímida, bonita e radiosa, e a filha Ilana, uma criancinha.
Eu já sabia quem era Lerner. Era conhecido não popular naquela cidade de pouco mais de 600 mil habitantes. Em um programa de variedades na antiga TV Canal 6, dos Diários Associados o "Dreher Convida", de Dino Almeida, junto com Vinicius Coelho e Adalgiza Portugal , foi o jornalista Aramis Millarch quem me introduziu Lerner. Millarch, com a persistência que o marcava, andava com Lerner a tiracolo. Decorreu daí a entrevista na tevê e, depois, a boa amizade com ele e família, o que não quer dizer que isso tenha limitado minha visão crítica sobre sua a obra. E que a tornou modelo para o mundo, de que são provas preocupações constantes da mídia mundial com o legado de Lerner na cidade, como agora o faz Lubow. Sem falar nas "peregrinações" de homens públicos do mundo todo que aqui vêm para conhecer a experiência urbana da cidade, especialmente em reciclagem de lixo e transporte.
Se para o norte-americano Lerner é uma mistura de vendedor de idéias e pragmático, eu vi desde o começo em Lerner um pregador com grande intuição. Numa época em que o país se abria para aceitar todo tipo de indústrias, poluentes sobretudo, ele falava e agia com mente de ecologista. Não há como negar: há 35 anos ele pregava o evangelho do meio ambiente e sua preservação com ações concretas: ônibus expressos em canaletas exclusivas, para impedir a proliferação do carro individual e abrigar o transporte de massa.
Meio ambiente era a chave da doutrina Lerner, que se ampliaria, em duas de suas administrações, com o plantio de um milhão de árvores, um recorde no país, marco não superado em nível mundial. Antevisão que o levou a criar a Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a maior geradora de ICMS do Paraná, um reduto à prova de poluição. A gerência da implantação da CIC coube ao "catequista" Cássio Taniguchi, disciplinado técnico oriundo do ITA. Nada a ver "com um imenso campo de golfe", como tentaram apelidar a CIC os seus opositores políticos.
Fui a Caxias do Sul, em 1972, com o grande apóstolo da revolução urbana de Curitiba, braço direito de Lerner, Rafael Dely, para a recepção à primeira unidade do ônibus expresso. Luiz Julio Zaruch, depois secretário de Imprensa de Curitiba, Almir Feijó, jornalista, e eu estávamos entre as testemunhas do ato histórico do "vermelhão" andando e chamando atenção nas ruas geladas de Caxias.
Lerner mudou a cidade visceralmente nas gestões 1971/75 e 1979/83. No terceiro mandato, fruto da histórica eleição dos "doze dias", fez-se prefeito pelo voto consagrador, mandato de 1989 a 1992. Com Fany, bolou outra revolução, o "Vale-Creche".
Inquieto, discurso não eloqüente, avesso às fofocas políticas, Lerner apostava no seu "feeling": em 48 horas, abortando movimentos protelatórios do comércio, implantou, num fim de semana, o fechamento da Avenida João Pessoa e de parte da Rua XV, nascendo o calçadão, uma novidade no Brasil de então, saudada com manchetes de apoio e, de outro lado, esquartejada por críticos ferozes.
Nem tudo deu certo: se a grande intervenção viária fez a vital ligação Norte-Sul da cidade, com o sistema trinário (duas rápidas e uma rua com canaleta para o expresso cercada por duas vias de tráfego lento, com habitações e comércio farto), ele quis que o cidadão usufruísse do lúdico inovador. Assim, contratou Juarez Machado para fazer o xadrez gigante na Praça Santos Andrade, precocemente abandonado.
Mas o Teatro do Paiol, adequação para espaço cênico de um antigo paiol de pólvora, foi inaugurado com festa: Vinícius, seu uísque, e Toquinho, numa noite para sempre memorável, tendo Millarch como o grande "meteur-en-scène". Com o Paiol se consolidaria outra ponta da obra, a Fundação Cultural de Curitiba, de cujo conselho da FCC nascente fazíamos parte Newton Freire-Maia, Eduardo Rocha Virmond, Edwald Labatut, Jaime Guelmann e eu.
Aroldo Murá G. Haygert é jornalista e presidente do Instituto Ciência e Fé. (www.cienciaefe.com.br)
Leia a segunda parte deste artigo no dia 8/6.