Experimente digitar no Google as palavras “rodovia da morte” seguidas de algum estado, qualquer um. Troque os estados, repare nas notícias que aparecem. Você verá tragédias em diversas rodovias estaduais e federais. BR-101 e BR-116 conseguem ser “da morte” em quase todos os estados que atravessam, de norte a sul do país. No Paraná, BR-376, PR-092, PR-323, PR-445, além da tradicional BR-116, já foram agraciadas com a nada honrosa alcunha. Mas qual merece o título infame? Ora, todas elas.
Não se pretende aqui desculpar os maus motoristas. A imprudência, a imperícia e a negligência são causas diretas de boa parte dos acidentes. Mas quando uma estrada se torna conhecida como “Rodovia da Morte”, deve existir algum motivo relacionado à própria estrada para o alto índice de acidentes fatais em um determinado ponto. Manutenção deficiente ou falta de sinalização, por exemplo. Alto volume de tráfego em pista simples também contribui.
As duas rodovias que vão de Curitiba para o litoral – BR-277 para Paranaguá e BR-376 para Garuva e Guaratuba – estão completamente defasadas
Um aspecto pouco abordado diz respeito ao traçado, à geometria da estrada. Nossas principais rodovias foram projetadas e construídas há 50, 60 anos, considerando as limitações econômicas e tecnológicas, o volume de tráfego e os veículos da época. Mas elas ficaram velhas, incapazes de oferecer segurança e conforto e de suprir as necessidades de transporte de pessoas e mercadorias.
As duas rodovias que vão de Curitiba para o litoral – BR-277 para Paranaguá e BR-376 para Garuva e Guaratuba – estão completamente defasadas. Os trechos de serra de ambas foram projetados por mulas no século 18. Literalmente, já que para estabelecer uma trilha e transpor uma serra, os antigos utilizavam os animais de carga para encontrar um caminho viável. Os traçados foram melhorados com o tempo, mas os pontos críticos permanecem, e nas duas rodovias há trechos muito sinuosos e com alta declividade. Somando-se a isso o tráfego intenso e pesado, tem-se a receita para a tragédia.
Os órgãos responsáveis pelas rodovias preferem colocar a culpa dos acidentes apenas nos motoristas, enquanto tomam medidas paliativas (e arrecadatórias) como a instalação de lombadas eletrônicas em pontos de risco
Uma rápida pesquisa mostra que os acidentes mais graves ocorrem justamente no final da descida da serra. Entre 2011 e 2015 aconteceram 1.768 acidentes no trecho mais crítico da BR-376 (km 664 ao 683), com 73 mortos e 688 feridos. No pior trecho da BR-277 (km 32 ao 46) foram 1.021 acidentes, 33 mortos e 402 feridos no mesmo período.
Em janeiro de 1993 perdi meu bom amigo e colega de faculdade Roberson em colisão frontal – o mais mortífero dos tipos de acidentes – com uma carreta na BR-153, entre Santo Antônio da Platina e Jacarezinho. As outras três pessoas que estavam no carro que ele dirigia também morreram. O trecho, de apenas 15 km em pista simples, que liga as duas importantes cidades do Norte Pioneiro tem longas retas e algumas curvas muito perigosas em declive, especialmente na saída (ou chegada) de Santo Antônio. O tráfego é intenso: carretas, caminhões de cana, pessoas que moram em uma cidade e trabalham ou estudam em outra, comerciantes, fazendeiros, ônibus, além de pessoas e cargas indo do interior de São Paulo para Curitiba ou Paranaguá. A estrada já deveria ter sido duplicada e ter tido seu traçado corrigido há muito tempo. Atualmente em regime de concessão, está com a pista em bom estado e com a sinalização razoável (o que é o mínimo que se deveria esperar), mas não houve nenhuma melhora substancial na segurança viária. No último mês de julho ocorreram pelo menos 4 mortes nesse mesmo trecho. Passados 23 anos, nada mudou.
A partir dos anos 1960, a ideia de forgiving highways (rodovias que perdoam) passou a ser desenvolvida e aplicada, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa. Consiste, basicamente, em assumir que motoristas cometerão erros e que veículos apresentarão falhas e, a partir dessa realidade, adaptar a rodovia de modo a evitar acidentes ou minimizar suas consequências. Separação física de pistas de sentido contrário, alargamento das faixas de rolamento, construção de áreas de escape, correções de traçado com a eliminação de rampas íngremes e de curvas fechadas, instalação de barreiras e defensas em trechos adjacentes a ribanceiras, remoção de árvores e postes próximos à pista, são algumas das medidas a serem aplicadas.
O número de mortes nos EUA caiu de 51 mil em 1966 para 35 mil em 2015, uma redução de mais de 30% em 40 anos. No mesmo período a população americana aumentou em 64% e a quilometragem percorrida pela soma dos veículos mais que triplicou. Uma redução notável, causada especialmente pelo incremento da segurança nas rodovias.
Nem é preciso dizer que o conceito de forgiving highways é praticamente desconhecido ou ignorado no Brasil. Tirando raras medidas pontuais, como a área de escape de caminhões construída na BR-376, não se vê qualquer iniciativa ampla com a intenção de aumentar a segurança das estradas de forma consistente e continuada. Os órgãos responsáveis pelas rodovias preferem colocar a culpa dos acidentes apenas nos motoristas, enquanto tomam medidas paliativas (e arrecadatórias) como a instalação de lombadas eletrônicas em pontos de risco. E assim, qualquer erro pode e será fatal. As rodovias da morte brasileiras não perdoam ninguém.
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