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Artigo

Descrença na Justiça

O ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot. (Foto: Felipe Sampaio/ STF)

Como parte do rito católico de expiação, os fiéis declaram-se pecadores “por pensamentos, palavras, obras e omissões”. Desde Freud, e do conhecimento psicanalítico do “cerne intratável da mente”, o pensamento saiu do rol dos pecados. O mesmo não se pode dizer dos pecados cometidos por palavras, muitos (in)devidamente condenados pelos exageros do politicamente correto; e daqueles realizados por obras, desses se encarregam os códigos Civil e Penal.

Certas liturgias de tribunais superiores são francamente ridículas e medievais: capas pretas, lugares de fala, tratamentos cerimoniosos e cuidados linguísticos mesmo nas ofensas. Talvez se justifiquem como signos da seriedade e da importância do dever desses ministros e ministras: o Supremo Tribunal Federal e, por contraparte, a Procuradoria-Geral da República têm por prerrogativa interpretar, proteger e manter a Constituição, representando assim a derradeira barreira entre o país e a barbárie e a tirania.

Trata-se de seres humanos, não divinos, e amiúde comportam-se de acordo com sua humanidade; desde que as sessões do Supremo passaram a ser televisionadas, despertando inesperado interesse popular, isso tornou-se mais evidente. Os desentendimentos, e algumas baixarias de que antes tinha-se notícia em terceira mão, foram escancaradas em tempo real.

O mais preocupante é a possibilidade de que pessoa tão intimamente envolvida com a Justiça tenha desesperado dela

Parte da “humanização” tem seus méritos, mostra a dimensão exata de cada protagonista, e isso na maioria dos casos os engrandece; os guardiães da Constituição não podem deixar de ter convicções, ideais, opiniões, e devem ter a coragem de lançá-las ao debate. Mas quando as meras vaidades pessoais, as mesquinharias, os interesses pecuniários, as vinculações político-partidárias mostram sua face, a nação se sobressalta e se envergonha.

No episódio em que um ex-procurador-geral declarou ter pensado em assassinar um ministro e matar-se em seguida, não houve pecado por pensamento, e sim pensamento. Pecou por obras, levando uma arma de fogo ao tribunal, ficando perigosamente próximo do crime. Então, passou a pecar por palavras, relatando suas intenções e gestos ao país boquiaberto.

É comum que marginais postem fotos que os incriminem; posam armados de fuzis, com drogas e montes de dinheiro e joias, e como consequência muitos são indiciados ou presos pelos crimes de que forneceram, eles mesmos, as provas. Com alguma reflexão, isso é compreensível: geralmente trata-se de pessoas com pouca ou nenhuma instrução, usuários frequentes de drogas, e deixam-se dominar pelo orgulho que lhes é possível, o de ter adquirido, embora de forma ilícita, os bens de consumo que a sociedade supostamente valorizará.

Procedimento ainda que remotamente semelhante é absurdo quando perpetrado por um adulto supostamente inteligente, que ocupou um dos cargos de maior prestígio na República. As tentativas de entender isso passam por interpretações diversas, de um surto passageiro ao interesse de chamar a atenção para o livro de memórias em publicação.

O mais preocupante disso é a possibilidade de que pessoa tão intimamente envolvida com a Justiça tenha desesperado dela, em um caso de suposto atentado contra a honra familiar. É apavorante pensar que um integrante da cúpula do Judiciário não viu forma de defesa além de um crime de morte; num país de lentidão processual inaudita, em que qualquer cidadão parece ver resultados apenas com acesso a advogados caros, inacessíveis ao trabalhador mediano, em que a reparação parece distante do homem comum, até mesmo aqueles mais preparados e com maiores recursos financeiros têm o “justiçamento” como solução?

Esta novidade macabra altera tudo o que se pode almejar como bom funcionamento social, muda os ensinamentos de qualquer professor a seus alunos, coloca em confronto com a realidade todos os bons conselhos de pais a seus filhos, destrói as palavras que pretendemos deixar à posteridade. Este exemplo cai como uma luva em procedimentos dos quais a comunidade já suspeitava, e passa a justificar atitudes que até ontem nem se ousava mencionar.

Wanda Camargo é educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil (UniBrasil).

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