Durante boa parte da nossa recente história de produção intelectual acadêmica, volumes e mais volumes de dissertações e teses foram relegadas ao consumo, quando muito, das traças de biblioteca. Seus resultados eram quase que segredados a uma banca composta por especialistas, e restritos, assim – salvo algumas exceções –, a um circuito de leitores muito limitado.
Os tempos mudaram e a digitalização destes trabalhos vem nos apresentar um novo público, ainda pouco conhecido e por isso mesmo desafiador. Por vezes implacável, a abertura a uma recepção mais ampla ao texto reforça a importância de deixarmos exaustivamente clara a pertinência do estudo a ser realizado, uma vez que vê-se multiplicado o próprio público a quem prestaremos contas. Esta faceta pode ainda ser maximizada mediante as ondas de acesso e compartilhamentos que suscitam as redes sociais.
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Por outro lado, a digitalização de dissertações e teses demandam um esforço para, além do trabalho principal, investirmos criativamente em novos formatos de textos, comunicações voltadas para não especialistas e para potenciais utilizadores dos dados produzidos. O que estou querendo chamar atenção é que o processo de digitalização dos trabalhos de conclusão de curso não foi devidamente acompanhado de uma reflexão por parte dos programas de pós-graduação, como se a prática da escrita prescindisse da pergunta: para quem estamos escrevendo?
Se à academia seria não apenas profícuo como urgente esse debate, a imprensa, por sua vez, não pode furtar-se a este. Tornar-se mais um a atuar na difícil difusão e discussão do conhecimento produzido nas universidades, em um país com níveis educacionais tão discrepantes, exige a responsabilidade de tratar com cuidado cada texto, para que não se incorra em críticas rasteiras (por exemplo, colando trechos deslocados do contexto de produção em que o mesmo fora escrito, não permitindo ao leitor uma familiarização ao enredo no qual o autor está situado). Ou seja, resenhemos e critiquemos os trabalhos, mas com seriedade. Ou isso ou estaremos fadados a prestar um desserviço com posturas anti-intelectuais e levianas.
Devo ainda dizer que a digitalização acadêmica não democratiza os ruídos a que nos expomos. Quer dizer, as ciências humanas sempre serão mais vulneráveis a tornar-se alvo de críticas, o que se deve à própria natureza do conhecimento que construímos.
Trata-se, como alegam alguns estudiosos, de uma interpretação de “segunda mão”, isso porque os “leigos”, aqueles a quem nos juntamos nas nossas pesquisas (e com quem aprendemos), bem como os que doravante terão acesso ao nosso estudo, já dispõem de uma interpretação sobre o que discutimos. Consiste justamente nisso o maior desafio e também o fascínio extremo que exercem as humanidades: a possibilidade de debater seus objetos de pensamento com todos.
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Finalmente, não é uma novidade ou singularidade brasileira temas “não canônicos” serem alvo de críticas. A antropóloga Jeanne Fravet-Saada teve um colega na academia francesa do final dos anos 70 do século passado que “chegou a sugerir que o CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica] deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repudiando a ciência, ela a teria empregado simplesmente para se tornar uma feiticeira”. A referida estudiosa, cuja atribuição de bolsa (recursos públicos) teve sua legitimidade questionada, simplesmente produziu o que o Professor Marcio Goldman (Museu Nacional/UFRJ), considera “uma da raras obras-primas da história do pensamento antropológico”.
Não é complicado, portanto, entendermos que não há um tema universalmente e de uma vez por todas relevante, mas podemos começar a indagar sua relevância nos perguntando se o fenômeno possui praticantes; se no horizonte prático de alguém aquilo que consideramos uma tolice ou mesmo uma imoralidade é, mais que viável, importante, interessante. Se a resposta for positiva, isso sinaliza que, no mínimo, o fenômeno serve para pensar. Que continuemos o debate.
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