| Foto: Nicholas Kamm/AFP

Ficou conhecida a frase de Mark Twain, em comentário a jornalistas, quando confrontado a um obituário publicado a seu respeito: “Os rumores sobre a minha morte são grandemente exagerados”. O mesmo poderia ser dito, até recentemente, sobre as ameaças de uma guerra comercial, continuamente anunciada pelos jornais nos últimos meses, mas que ainda não tinha sido aberta de verdade. Não mais, agora já é um fato: o presidente Trump anunciou sua decisão de impor sobretaxas a produtos exportados pela China num valor aproximado a US$ 50 bilhões. A China anunciou imediatamente que iria retaliar por um montante equivalente, alvejando produtos da exportação americana para a China. Ou seja, a declaração de guerra já foi expedida: resta ver como serão feitos os movimentos dos batalhões respectivos das políticas comerciais nacionais.

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Em primeiro lugar, é preciso ficar claro que o anúncio americano não atinge apenas produtos chineses exportados para os EUA – muitos dos quais, por sinal, podem ser feitos na China, mas sob licença americana, ou seja, servindo aos interesses das empresas e dos consumidores americanos –, e sim os fluxos de comércio dessas linhas de produtos de quaisquer origens e destinações. A explicação é que as sobretaxas aplicadas pelas autoridades aduaneiras americanas atingem produtos, não fornecedores, como sempre ocorre com as salvaguardas (que são diferentes de outros mecanismos de defesa comercial, como pode ser o antidumping, que foca um fornecedor determinado).

Trump justificou a imposição dessas medidas como sendo por motivos de “segurança nacional”, o que é altamente discutível, e poderá ser facilmente desmentido por uma investigação no âmbito da OMC (como fatalmente ocorrerá a partir de reclamações de parceiros prejudicados, e não apenas a China, como já revelado no caso do alumínio e do aço). O problema é que uma investigação na OMC, e a consequente condenação de uma medida claramente violadora do Código de Salvaguardas do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), costuma demorar mais de ano e meio, talvez dois anos, para ser concluída, e a única coisa que o painel arbitral conseguirá aprovar será, provavelmente, uma autorização para retaliações legais dos atingidos, o que não resolve o problema para ninguém, uma vez que o comércio não se faz como mera expressão da vontade, e sim por razões de preço e qualidade. Assim, as contramedidas conseguem apenas agravar o problema original.

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O comércio não se faz como mera expressão da vontade, e sim por razões de preço e qualidade

Uma coisa precisa ficar clara: os déficits comerciais dos EUA, atualmente gigantescos, não são uma novidade, mas um fenômeno praticamente crônico há várias décadas, ainda que eles tenham conhecido flutuações cíclicas – ao sabor das paridades cambiais e dos ciclos econômicos nas principais economias do planeta –, assim como o imenso desequilíbrio no intercâmbio comercial com a China, crescente desde o final do século passado. Dos quase 900 bilhões de dólares de déficit na balança comercial dos EUA, um terço é realizado por exportações chinesas em excesso de suas importações da mesma origem, uma conta que é largamente compensada pelos ganhos obtidos pelos EUA a partir dos serviços, rendas do capital (em diversas rubricas) investido sob a forma de investimento direto ou de aplicações de portfólio.

A concepção primitiva que o presidente americano mantém a respeito do comércio internacional faz com que ele veja um “prejuízo” para o seu país cada vez que se manifesta um déficit bilateral, o que é absolutamente considerado uma insensatez por qualquer economista sério. O déficit geograficamente considerado a partir do território dos EUA é amplamente compensado pelas exportações das empresas americanas ao redor do mundo, como resultado de décadas de investimentos diretos em quase todos os quadrantes do planeta. Muitos outros países exibem balanças comerciais cronicamente deficitárias, mas cobrindo essas “lacunas” por retornos em outros capítulos do balanço de pagamentos, o que é exatamente o caso dos EUA, que justamente exporta sua moeda nacional ao resto do mundo. O euro não confirmou até o momento as expectativas de que poderia representar parte substancial das reservas nacionais e dos fluxos de pagamentos de fatores para um volume mais significativo dos intercâmbios mundiais.

O Brasil, por exemplo, país notoriamente protecionista, sempre manteve um estrito controle sobre os fluxos de sua balança comercial, uma vez que esses saldos são o único recurso de que dispõe para compensar uma balança de serviços cronicamente deficitária, mas justamente com os EUA acumula saldos negativos desde vários anos, o que não o impediu de ser também atingido pelas salvaguardas de Trump sobre o aço e o alumínio, cabendo-lhe apenas aceitar as sobretaxas (para o alumínio) ou redução dos volumes exportados, as chamadas “restrições voluntárias”, claramente ilegais aos olhos da OMC. Registre-se, desde já, que as mesmas medidas foram aplicadas contra os parceiros americanos do Nafta, Canadá e México, o que é propriamente incrível, pois entre os três países deveria vigorar o livre comércio.

Leia também: Um mundo que desaparece (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 21 de maio de 2018)

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Opinião da Gazeta: A guerra comercial entre EUA e China (editorial de 18 de abril de 2018)

A China saberá responder adequadamente – o que não quer dizer sem prejuízos para si mesma e outros países, entre eles o Brasil – a esse novo desafio lançado por um presidente claramente equivocado tanto no plano conceitual quanto no aspecto prático. Os primeiros prejudicados serão as empresas, os consumidores e os trabalhadores americanos, de uma ampla gama de setores (e segundo uma escolha chinesa visando atingir em primeiro lugar os eleitores de Trump em determinados estados). Pode-se, também, colocar esse complicado contencioso num quadro mais amplo, marcado pela irresistível ascensão da China a certa preeminência internacional, sobretudo no campo econômico, e pelo declínio relativo dos EUA como superpotência indiscutível em todas as vertentes do “grande jogo” geopolítico.

De fato, depois da Guerra Fria geopolítica conhecida durante as quatro décadas em que vigorou a bipolaridade EUA-União Soviética, o que temos hoje é uma Guerra Fria econômica, num contexto de crescente multipolaridade a partir da emergência de potências ascendentes fora do eixo norte-atlântico tradicional. Tanto em termos táticos, quando no plano estratégico, a China deve sagrar-se vencedora desse embate, na medida em que possuiu uma visão clara de quais são os seus objetivos permanentes, a despeito mesmo de suas práticas claramente oportunistas no âmbito comercial. O presidente Trump parece completamente perdido na condução de sua política comercial, uma vez que promete impor novas sanções, pelo dobro do valor, caso a China responda às suas medidas não apenas irracionais, como claramente ilegais segundo as regras da OMC.

O que vai ocorrer? Provavelmente uma crise inédita nas relações econômicas internacionais, provocada por um personagem também inédito na governança da maior potência planetária. Os americanos já “inventaram” a Lei de Murphy – o que pode dar errado, dará, da pior forma possível – e também conhecem a “lei das consequências involuntárias”, que é exatamente o que acontecerá neste caso. O presidente Trump vai conseguir prejudicar não só os seus próprios eleitores, como todos os cidadãos, dezenas de empresas americanas e o papel dos EUA na manutenção da ordem econômica mundial. Parece muito, mas ainda é pouco para um personagem nitidamente desequilibrado, o primeiro a governar o seu país – e a pretender mandar no mundo – a partir de seus tweets diários, já na altura de algumas dezenas de milhares. Podemos esperar novos e tresloucados gestos nas próximas semanas e meses. Parafraseando o título de uma antiga série da TV americana: incrível, mas verdadeiro!

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, professor universitário e especialista do Instituto Millenium.