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Foi-se o tempo em que as preocupações dos conservadores europeus e norte-americanos eram a perda de espaço do cristianismo em seus países diante da crescente migração de países islâmicos. Partidos de direita, como o AfD (Alternativa para a Alemanha), que antes eram conhecidos pelo enfrentamento do radicalismo islâmico e até marcaram posição forte contra o islã e a migração, experimentam uma perigosa aproximação com a religião de Maomé, vista como uma alternativa “mais tradicional” do que a cada vez mais demonizada ocidentalização.
Em 2016, o AfD se notabilizou na mídia alemã por adotar uma “plataforma explicitamente anti-islâmica”, dizendo que o islamismo não faz parte da Alemanha. Apenas dois anos depois da declaração, Arthur Wagner, um de seus líderes conhecidos por sua retórica antimuçulmana, converteu-se ao islamismo. Isso não parece ter incomodado em nada o partido, que afirmou que “religião é uma questão privada”. O AfD tem sido conhecido na Alemanha por suas posições pró-Rússia em relação à invasão da Ucrânia, embora o governo alemão busque criminalizar o partido devido à sua retórica “islamofóbica” e anti-identitária.
A direita no mundo não parece estar preocupada com uma aproximação que tem um potencial de associá-la a todo tipo de radicalismo revolucionário e até ao terrorismo
Já no Reino Unido, uma das vozes mais conhecidas da direita conservadora, o eurodeputado Nigel Farage, também dá passos perigosos tanto na direção da Rússia quanto do islamismo. Recentemente, foi divulgado que o milionário muçulmano Zia Yusuf, que no ano passado arrecadou cerca de 32 milhões de libras (R$ 229 milhões) após vender aplicativo de luxo Velocit Black fundado por ele, fez uma doação de centenas de milhares de libras para o partido Reform UK, de Farage. Yusuf considera Farage como a única pessoa capaz de consertar o Reino Unido. Essa foi a maior doação feita ao partido até o momento e uma das “vantagens” dessa doação, segundo analistas, é a de que irá irritar a militância woke, que tinha buscando acusar Farage de islamofobia após algumas declarações polêmicas que ele fez.
“A Grã-Bretanha é o lar das pessoas mais calorosas e amáveis do mundo”, disse Yusuf. “Ela acolheu milhões de imigrantes de todas as raças e crenças”, declarou o milionário, fazendo lembrar as mudanças na liturgia da coroação de Charles III, acolhendo as “fés” do Reino Unido. O indiferentismo religioso que domina a elite progressista europeia parece estar caminhando já para uma versão “tradicionalista” entre conservadores. Isso aparece ao lado de outras defesas aparentemente menos “tolerantes”. Afinal, o flerte de uma parte da direita com o islamismo e com a Rússia, especialmente na Europa, tem caminhado junto de declarações perigosas envolvendo o nazismo.
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Embora pareça contraditório, ambas as retóricas se unem no antissemitismo e na tônica antiocidental e antiliberal que tem sido a marca dessa nem tão nova direita. Mas o combate ao liberalismo seria muito bem-vindo aos conservadores se não estivesse contextualmente inserido numa plataforma bastante específica – e perigosa.
Em junho, o candidato britânico do Reform UK, Jack Aaron, defendeu postagens nas redes sociais em que afirmava que Hitler era "brilhante" em inspirar as pessoas a agir e que o presidente sírio Bashar al-Assad é "gentil por natureza". Evidentemente, nem todos comungam deste tipo de simpatia. Apesar disso, o fundo ideológico parece apontar para perigosos caminhos de uma direita que parece estar sendo colonizada a olhos vistos.
Nigel Farage, ícone do Brexit, se tornou o porta-voz da luta contra a “cultura do cancelamento”, depois de ter virado alvo da polícia belga no episódio do evento NatCon (Nationalist Conservative), que reunia conservadores do mundo inteiro, além de uma influente parcela de propagandistas russos, o que não parece ter sido problema para o partido. Aliás, de maneira geral, a direita no mundo não parece estar preocupada com uma aproximação que tem um potencial de associá-la a todo tipo de radicalismo revolucionário e até ao terrorismo, convertendo a força espontânea das reações conservadoras no mundo em um instrumento fácil de agendas e projetos específicos e bem estruturados.
Recentemente, uma investigação liderada pela Polônia e publicada pelo jornal The Wall Street Journal, revelou que a Rússia tem mantido uma rede de recrutamento de espiões para operar discretamente pela Europa. O recrutamento é feito por aplicativos como o Telegram, e envolve principalmente imigrantes de origem muçulmana. Isso acontece paralelamente ao aumento de certa tolerância religiosa (ou indiferentismo religioso?) dentro da direita europeia, algo impensável poucos anos atrás, especificamente nos anos que antecederam a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Tanto a propaganda Rússia quanto a ação de movimentos islâmicos no Ocidente possuem, em si mesmos, projetos de expansão global de caráter totalitário
Se considerarmos as diversas declarações de diplomatas russos sobre a existência do plano de uma Rússia que vá “de Lisboa a Vladivostok”, como se comportam os milhares de imigrantes muçulmanos inseridos na Europa há décadas pelas políticas migratórias da União Europeia? Será que eles se uniriam na defesa das nações que os receberam em caso de uma invasão russa à Europa, sonho antigo do Império Russo?
Nos EUA, a plataforma de Donald Trump também se vê rodeada de influências deste tipo, o suficiente para não se ter segurança quanto à posição do próprio Trump diante de um avanço russo contra o Ocidente. Em diversas ocasiões, o ex-presidente americano que reúne esperanças de conservadores, diz que irá resolver a guerra da Ucrânia com uma negociação. Analistas apontam para o fato já evidente de que a Ucrânia terminará sem uma parte de seu território caso queira participar da paz de Trump, o que resultará numa importante vitória política para o futuro presidente norte-americano, mas uma histórica vitória geopolítica para Putin, a partir da qual o seu avanço será formidavelmente favorecido. Trump é um negociador. Sua vitória termina no aperto de mãos. Putin é bem diferente, pois colhe vitórias em campos diferentes.
No atual momento, a Rússia precisa dos muçulmanos e eles da Rússia. Com um território gigantesco e uma grande diversidade étnica e religiosa, a única forma de unidade possível é uma abordagem multirreligiosa. O seu avanço sobre o mundo depende do convencimento da retórica da multipolaridade, reedição do slogan da libertação dos povos que acompanhou a União Soviética e sua expansão global que levou ao globalismo – já enfraquecido e demandando superação no processo revolucionário.
Tanto a propaganda Rússia quanto a ação de movimentos islâmicos no Ocidente possuem, em si mesmos, projetos de expansão global de caráter totalitário, embora caminhem cultural e politicamente pela via da democracia ocidental há décadas em uma franca cooperação de interesses. A Rússia, em si, não oferece obstáculo ao avanço do islamismo, mas pode servir de importante veículo. O único obstáculo ao islã é a outra religião que se propõe a ser universal: o cristianismo, mais especificamente a Igreja Católica Apostólica Romana, contra a qual a Rússia também se insurge através da narrativa da “Terceira Roma”.
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O aparecimento de uma resistência ou oposição ao projeto liberal de globalização parece ter fornecido uma importante oportunidade de avanço para as novas escatologias políticas baseadas numa guerra contra o mundo moderno. Embora tenham projetos um pouco distintos, Rússia e movimentos islâmicos possuem objetivos e interesses comuns no Ocidente. Como projetos intrinsecamente totalitários e populistas, eles necessitam de um retorno da confiança nos poderes estatais, que para isso precisam ser associados às tradições dos povos, de maneira a integrá-los numa narrativa mítica comum. Este é o principal aspecto estratégico da oposição ao liberalismo por parte das chamadas “ideologias de terceira posição”, em ascensão em todo o mundo.
Conservadores e tradicionalista de todo o mundo abraçam a retórica antiliberal da Rússia e do Islã, identificando-as com uma abordagem “tradicional”, sem perceber que o aspecto verdadeiramente inconveniente do liberalismo, para eles, são menos as questões morais e filosóficas, e mais a desconfiança natural gerada no Ocidente contra ações estatais. Para avançarem, as ideologias de “terceira posição” precisam de uma confiança cada vez maior no Estado e em seus líderes populistas, vistos como verdadeiros reis-filósofos de um neoplatonismo que resgata toda a metafísica esotérica de uma new age adaptada ao gosto conservador.
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Afinal, o aspecto fundamental do liberalismo permanece vivo no pensamento totalitário pós-moderno da nova direita igualitária, expressa pela retórica da multipolaridade. Trazida principalmente pelo ideólogo russo Alexander Dugin, que tem se tornado uma voz tão influente quanto menos discreta no meio conservador europeu e norte-americano, a multipolaridade revela o caráter revolucionário e verdadeiramente igualitarista da nova revolução conservadora proposta pela Rússia.
Embora pareça uma abordagem nova, Dugin trouxe a ideia da multipolaridade dos primeiros textos neonazistas inspirados na obra de Martin Heidegger, que após a derrota nazista começaram a construir uma geopolítica igualitária que substituísse a noção de “humanidade” ocidental, convertendo-a numa “terra dos mil povos”. É o que explica o professor chileno Víctor Farias, no livro Heidegger e sua herança: o neonazismo, o neofascismo e o fundamentalismo islâmico, que traz um importante ponto em comum entre as novas ideologias e sua sedução tanto á direita quanto à esquerda.
A falta de conhecimento de conservadores ocidentais sobre as origens filosóficas comuns que unem o neonazismo, fascismo, islã e a atual retórica ideológica russa, pode trazer consequências devastadoras à nascente e necessária resistência ao globalismo ocidental e suas agendas progressistas. O principal resultado do flerte estratégico de conservadores com islã e a Rússia é a perda progressiva de espaço para um conservadorismo cristão, católico, e mais associado à verdadeira tradição ocidental, caminhando inevitavelmente para a realização de um projeto que atende aos interesses e utopias espiritualistas dos principais agentes globalistas do mundo em atividade: a mudança de eixo de poder global do Ocidente para o Oriente.
Cristian Derosa é jornalista, escritor e autor do livro recém lançado “O Sol Negro da Rússia: raízes ocultistas do eurasianismo”.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos