Dia 27 de março o Teatro Guaíra apresentou o show musical Sassaricando, espetáculo a que compareci, na certeza de gostar. Nem poderia ser diferente para quem curte a música popular e guarda na memória o fascínio dos velhos carnavais, com seus ritmos que balançavam as cadeiras de mulatas, louras, e morenas. Mas se essas eram as minhas razões, havia também outras a lotarem as poltronas de nosso teatro, obra do talento de Rubens Meister.

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O enredo começou e avançou com um crescendo de emoção à medida em que os atores interagiam com o público, fazendo-o cada vez mais atraente, vivo e animado. A partir de uma canção de l932, "O Teu Cabelo não nega", de Lamartine Babo, na voz de Castro Barbosa, fomos ouvindo nos modos e adereços de um elenco de primeira linha: "Pierrô apaixonado", "Pirata da perna de pau", "Yes, nós temos bananas", "Pastorinhas", "Linda morena", "Malmequer", "Cantores do rádio", "Mamãe eu quero" e dezenas de outras músicas a empolgar uma platéia ávida, atenta e participativa.

"Ala-La-Ô" foi declamado antes de ser cantado. É do carnaval de 1941, de Haroldo Lobo e Nassara, com a história de que Haroldo, ao ver a letra com a palavra Alá várias vezes repetida, salvou-a com o brado Alá lá ô ô ô ô ô ô a lhe garantir o lançamento e o sucesso. Teve ainda uma interpretação de Carlos Galhardo que, com "Nós queremos uma valsa", encerrou seus êxitos numa área que nunca foi de sua predileção.

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Uma nota de destaque para "Cidade mulher", a maior apoteose ao Rio de Janeiro, acima de "Cidade maravilhosa", de André Filho e Aurora Miranda. "Cidade notável e inimitável maior e mais bela que outra qualquer, cidade sensível e irresistível; cidade do amor, cidade mulher", diz a letra. Considerada a maior obra de Noel Rosa, jaz perdida e esquecida numa apressada gravação de Orlando Silva. Certa feita pedi à Gal Costa que recuperasse essa jóia de nosso cancioneiro, mas a baianinha sestrosa não me atendeu.

Tais equívocos são comuns na área musical e há exemplos bastante significativos. Em 1917, Pixinguinha compôs a valsa "Rosa" e o choro "Carinhoso", guardados até 1936, quando o último ganhou uma modesta letra do Braguinha. No ano seguinte, ambos foram oferecidos a Francisco Alves e Carlos Galhardo, que os rejeitaram para o apogeu de Orlando Silva. Como em "Lábios que Beijei", as canções deram mais fama ao cantor das multidões. Ataulfo Alves criou "Amélia", a mulher de verdade, oferecendo-a aos intérpretes mais famosos da época. Diante da negativa geral, cantou ele mesmo com suas "pastoras" e acertou no milhar.

Sassaricando veio mostrar aos jovens de hoje as belezas dos carnavais passados, quando os foliões munidos de lança-perfumes, Rodo ou Rigoleto, Vlan ou Flirt, serpentinas e confetes, isolados ou em blocos, cantavam e sassaricavam. Com o advento das escolas de samba e suas músicas próprias, todo esse manancial foi estancado. Hoje há as galeras dos sambódromos, no maior espetáculo sobre a terra, cheio de luxo e riqueza, porta-bandeiras e mestre-salas, baianas bem nutridas e mulheres seminuas que maravilham os olhos, mas cansam pelo refrão monótono, repetitivo, sonolento. Respeite-se em tudo a voz do Jamelão, criador de "Matriz e Filial" ("afinal o que pensa conseguir me desprezando, se tua sina é voltar sempre chorando, arrependida me pedindo pra ficar"), ausente no último desfile da Mangueira, aos 90 anos de idade.

Quando, em l939, me tornei escoteiro da Jahn para ir ao Rio de Janeiro com o Abílio, o Anfrísio, o Airton e o Cabeça de Anta, numa delegação de mais de "quinhentos bambinos comandados por um cretino", na opinião de Mussolini, estive numa rádio onde conheci a Dircinha Batista, que me autografou uma foto que perdi. Vi também Aurora Miranda e Linda Batista, ambas bonitas; o flautista Benedito Lacerda; Pixinguinha, um mulato graúdo, desleixado, farto de ventre e feio como a necessidade; Lamartine Babo, a magreza mais magra do planeta e, ao microfone, Barbosa Junior, um chato de galochas, apresentando seu programa humorístico "barbosadas", que tinha tudo, menos graça. Mas gostei da visita que me deu a oportunidade de ver perto gente muito importante para mim.

O Brasil, salvo a lírica Bidu Sayão, nunca produziu um cantor para exportação. Nenhum atravessou nossas fronteiras, permanecendo todos numa vanglória de província, sem cacife para se arvorar a ir mais longe. A Argentina teve Carlos Gardel; o México, José Mojica e Pedro Vargas; o Chile, Lucio Gaitica, a Espanha nos mandou Gregório Barrios, e nós não mandamos ninguém. Os quatro grandes – Francisco Alves, Silvio Caldas, Orlando Silva e Carlos Galhardo –, ao lado de Gilberto Alves, o melhor dos cinco, nunca foram desafinar lá fora. Mais tarde Roberto Carlos gravou em espanhol e foi bem sucedido. Para muitos, Aguinaldo Raiol é a nossa maior voz. Mas não acontece, além de foros especiais quando precisamos dizer que "habemos cantantes".

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Apesar do notável sucesso, não daria para Sassaricando a nota máxima, pelo fato de esquecer a marcha de João de Barros e Alcir Pires Vermelho, a "Dama das Camélias", vencedora do carnaval de 1940. O julgamento foi de Villa Lobos, Pixinguinha e Luiz Peixoto. No mais as excelências de um show imperdível, do qual adquiri o CD na saída do teatro, para ouvir em casa, que é o melhor lugar do mundo.

Lauro Grein Filho é presidente da Cruz Vermelha e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.