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“A luz do sol é o melhor desinfetante” (Louis Brandeis, 1856-1941)
Desde o início de 2020, quando os profissionais de saúde mental observaram o surgimento da pandemia do novo vírus, inicialmente identificado na China e rapidamente alardeado como um potencial grave problema para a saúde pública mundial, imediatamente as preocupações começaram a surgir em forma de artigos científicos.
Vale a pena uma rápida digressão para o mundo científico médico: os artigos científicos ficam referenciados em poucas grandes plataformas de internet, sendo uma das mais importantes a Medline, através do Pubmed. Antes de escrever este texto, sem setembro de 2020, em busca referente a “doenças mentais” e “Covid-19” (assim como seus termos correlatos), encontrei um número enorme de artigos produzidos apenas nestes nove meses de 2020: são 1.048 artigos já publicados. Este número marca a clara presunção, pela comunidade científica internacional, desde o início, de que a saúde mental seria invariavelmente afetada.
Nos primeiros meses do ano, diante da grande falta de informações de como a doença se distribuiria sobre o globo, as investigações se concentravam em avaliar a extensão da gravidade da doença causada pelo próprio vírus, procurando-se por alterações psiquiátricas e neuropsiquiátricas oriundas de lesões funcionais ou estruturais neuronais, provocadas pelo próprio vírus ou pela resposta inflamatória do organismo, em resposta defensiva à infecção.
Além desta investigação de relação direta entre doenças mentais e o vírus, surgiram outras perguntas: “Qual o impacto psíquico referente à exposição do estresse em vivenciar a pandemia em si mesma e aos esforços de controle sanitário, claramente espartanos, tais quais a obrigatoriedade de isolamento social, uso de máscaras, interrupção de atividades de vida normais, atividades escolares, econômicas etc.?”; “Como tantas mudanças impactarão no comportamento suicida?”.
Evidências epidemiológicas foram decisivas para revelar um panorama absolutamente caótico da saúde mental atual: praticamente todas as doenças mentais preexistentes pioraram; novos casos eram muito mais frequentes quando comparados às incidências normais em todos os grupos estudados (jovens, profissionais de saúde, mulheres, homens etc.) e em todas as áreas da saúde mental (psicose, depressão, ansiedade, transtornos alimentares, uso nocivo de álcool e outras drogas etc.).
Em artigo publicado por Marilisa Barros e colegas em agosto, observamos a resposta de mais de 45 mil brasileiros inqueridos sobre sintomas de saúde mental durante o período da pandemia: nada menos que 40% deles referiram estar frequentemente tristes ou deprimidos; cerca de 52%, frequentemente ansiosos ou nervosos; 43,5%, com problemas de sono que não tinham até iniciar a pandemia; e 48% dos que já tinham insônia experimentaram piora do problema. Estes dados estão em consonância com os apresentados por outros países como China, EUA, Espanha, Itália, Índia e Hong Kong.
Tais queixas de desconforto psíquico são tão comuns que Steven Taylor e seus colegas propõem o conceito de “Síndrome do Estresse por Covid” (tradução livre), em artigo publicado recentemente na revista Depression and Anxiety em que avaliam a síndrome nas seguintes dimensões: 1. medo do perigo da Covid-19, que inclui o temor de se expor a partículas do Sars-CoV-2; 2. preocupações quanto às consequências socioeconômicas causadas pela Covid-19 (como perdas financeiras ou interrupção de suprimentos pessoais); 3. medo de estrangeiros espalharem as partículas de Sars-CoV-2; 4. sintomas de estresse traumático associado à exposição à Covid-19 (pesadelos, pensamentos intrusivos, imaginações relacionadas à Covid-19); e 5. checagem compulsiva ou busca compulsiva por limpeza de possíveis fontes de Covid-19.
Este construto tem por objetivo auxiliar a identificar espectros de intensidade de sofrimento psíquico entre as pessoas, assim como a percepção de quando chegaremos à percepção do fim “psíquico” do evento pandemia. Mas, quando a pandemia acabar, outro grave problema psiquiátrico poderá surgir, ainda pior: o suicídio.
Grave preocupação entre os profissionais da saúde mental, se não a maior, é o suicídio. Danuta Wassermann, em artigo especial publicado na World Psychiatry em setembro, nos lembra que 800 mil pessoas morrem por suicídio ao ano. Wassermann deixa-nos claras quais as preocupações que devem imperar quanto às estratégias para evitar o aumento da taxa de suicídio: espetacularização das mortes e da pandemia pela mídia, medo de procurar serviços de saúde por receio de ser infectado pelo vírus, concentração de recursos apenas na pandemia, desemprego, prejuízos financeiros, sensação de solidão devido ao isolamento e interrupção de atividades sociais (sim, temos sérios problemas a resolver no Brasil).
Sabe-se que os suicídios tendem a reduzir na vigência de crises quaisquer, como as de saúde pública; porém, após a solução da crise, o número de casos passa por um alavancamento. Neste sentido, o pior está por vir; por outro lado, temos ainda tempo para algum preparo, para adoção de medidas preventivas.
Pensando nas estratégias para evitar o aumento das taxas de suicídio (as mesmas para prevenção de doenças psiquiátricas), fica claro quão nociva é para a saúde mental da população uma mídia que, em nome de quaisquer objetivos, não conclui seu nobre papel de informar com equilíbrio toda a situação. Faz-se mister evitar hipervigilância de certos aspectos em detrimento de outros; evitar ideologias, politizações e todo tipo de influência que impeça a compreensão clara do que o consumidor da notícia precisa saber.
Diante da grave situação de saúde mental descrita nesse texto, não pode haver dúvida de que não há espaço para manipulações ideológicas na imprensa, ao menos nesse tema. É uma questão humanitária. Sem essa compreensão, caminharemos para a autodestruição.
Existem duas situações recorrentes, muito impulsionadas pela mídia, que trazem grave desequilíbrio da compreensão da pandemia no território brasileiro. A primeira diz respeito à espetacularização das mortes, com contagens diárias, sem haver parâmetros comparatórios, como outras causas de mortalidade (cardiovasculares, cerebrovasculares etc.) ou de pacientes que foram curados da Covid-19, que poderiam trazer uma visão mais clara, balizada e alentadora da realidade que nos afeta. A segunda se refere à negação da realidade do tratamento precoce, baseado em falsas premissas científicas, negando à população a percepção de que existem abordagens médicas com expectativa de benefício tão reais quanto a maioria dos outros tratamentos de todas as especialidades médicas, em nível de evidência muito semelhante.
Essas duas mensagens, veiculadas por grande parte da mídia, completam a total desolação do indivíduo que se vê cercado de mortes, em ritmo de crescimento, chegando próximo de si e de sua família, sem que exista nenhum tratamento para sua proteção ou redução de danos. Não é difícil se desesperar diante disso.
Concluindo, trago as palavras de Joel Swendsen, editor da revista Journal of Behavioural and Cognitive Therapy, que, em editorial de setembro intitulado “Covid-19 e Saúde Mental: Como uma pandemia pode revelar outra”, escreve: “A pandemia de Covid-19 afetou desproporcionalmente indivíduos com transtornos mentais, e revelou falhas fundamentais na forma como as pessoas vulneráveis são tratadas no contexto de tais crises. Grande parte dessa dificuldade pode ser atribuída à ignorância da prevalência, gravidade e carga econômica associada a essas condições, bem como às desigualdades duradouras na forma como a doença física é tratada em comparação com o adoecimento mental. Como os transtornos mentais são agora a maior causa de incapacidade, chegamos ao ponto em que os tremendos custos pessoais e sociais associados a essas condições não podem mais ser ignorados. Mudanças dramáticas são necessárias para substituir os esforços lentos e incrementais que mais frequentemente caracterizam a política pública de saúde. Tais mudanças não podem mais esperar pelas soluções de nível nacional ou internacional que antes eram esperadas, mas podem ser tão eficazes através do uso de novas tecnologias, organização de base e iniciativas em escala local.”
Permitamos que as luzes da verdade destruam as trevas da ignorância.
Carlos Henrique Oliva é médico psiquiatra com residência médica em Psiquiatria na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e estágio em Neuromodulação na Harvard Medical School.