Desde a divulgação da Nota Técnica 11/2019 do Ministério da Saúde, várias opiniões divergentes sobre temas centrais estão sendo debatidas fervorosamente: a eletroconvulsoterapia (ECT) e o incentivo para leitos de internamento psiquiátrico.
Com o retorno da oferta da eletroconvulsoterapia – este é o nome correto do procedimento – nos procedimentos ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), opositores a associaram quase imediatamente a um método de tortura, punição ou não condizente com os direitos humanos. Quem, afinal, não se compadeceria com essa imagem?
Sim, houve muitos excessos no passado. Mas, após a suspensão da ECT pelo próprio SUS, o procedimento não deixou de ser realizado; ele apenas passou a ser oferecido para a população que tinha dinheiro suficiente para arcar com seu custo. A ECT moderna é feita com protocolos e indicações rígidas, sob anestesia, monitoramento cerebral, respiratório e cardiovascular. Ou seja: ela nunca deixou de ser uma alternativa para aqueles que podem pagar por ela.
O próprio aparelho de ECT evoluiu significativamente desde sua introdução, em meados dos anos 30. Um dos principais avanços está no refinamento dos pulsos elétricos, para que eles sejam os menores possíveis dentro do necessário para induzir uma crise convulsiva – choque este com duração inferior a três segundos. Importante ressaltar que é a crise convulsiva que gera o efeito terapêutico, e não o choque. Antes do desenvolvimento da ECT, a indução da convulsão era feita por hipoglicemia ou medicamentos que se mostraram altamente neurotóxicos; o choque foi apenas a maneira mais segura descoberta para induzi-la.
Parece cruel imaginar uma pessoa, próxima ou não, levando um “choque”. Mas o paciente não sente absolutamente nada: a segurança do procedimento é semelhante à de outras técnicas realizadas sob efeito de anestesia, como, por exemplo, uma endoscopia – tanto que o índice de complicações graves envolvendo ECT gira em torno de dois casos a cada 100 mil procedimentos.
A eletroconvulsoterapia moderna é feita com protocolos e indicações rígidas, sob anestesia
As indicações para seu uso são precisas, e entre as mais comuns estão depressão grave com risco de suicídio iminente, depressão grave em gestantes (aqui, a ECT é utilizada justamente pela alta segurança do procedimento) e tipos de esquizofrenia que não respondem aos medicamentos e terapias convencionais. Vale lembrar também que não é permitido o uso de ECT sem o consentimento do próprio paciente e familiares.
Já sobre o incentivo aos leitos psiquiátricos, as manchetes seguiam a mesma linha, associando-os à tortura, à prisão e ao abandono nos ditos manicômios – inclusive crianças seriam abandonadas ali. Novamente, quem não se compadeceria com essa imagem?
Grandes manicômios, com pessoas asiladas, também existiram e seguem existindo, apesar de em número bem menor que outrora: até meados da década de 50, quando a medicina começou a descobrir medicamentos eficazes para o tratamento de transtornos mentais mais graves, o asilamento era praxe. Isso mudou: hoje a psiquiatria moderna indica internamento em situações específicas, como crises e surtos que implicam algum tipo de risco, ou quando há falha dos tratamentos extra-hospitalares.
Após a melhora do quadro clínico e o controle do risco, o paciente deve receber alta imediatamente. É má pratica deixá-lo um único dia a mais internado sem motivo. Um dado fundamental nessa discussão é que a duração média atual dos internamentos gira em torno de 20 a 30 dias, com raros casos chegando à casa dos 90 dias.
É notório também que desde o início dos anos 2000 o Brasil reduziu drasticamente o número de leitos psiquiátricos no SUS. Em boa parte, esses leitos eram utilizados em internamentos de longa permanência ou como asilamento, e esses não farão falta. Mas o corte foi brusco e intenso demais: não houve tempo para a implementação de programas para acolher os milhares de egressos; os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as residências terapêuticas (onde moram aqueles que necessitam de auxílio) e leitos psiquiátricos em hospitais em geral, eram e ainda são insuficientes – atualmente, contamos com 0,1 leito para cada mil habitantes, quando o mínimo recomendado é 0,3 para cada mil habitantes.
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A consequência dessa defasagem, claro, está ao alcance dos nossos olhos: aumento da população de rua, do número de doentes mentais em unidades prisionais, superlotação de unidades de emergência e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), com inúmeras pessoas aguardando por uma vaga em leito psiquiátrico – e muitas vezes ela não “aparece” em tempo hábil.
E as crianças? Mais uma vez, é comovente pensar que uma criança ou adolescente precise ser internado em um hospital psiquiátrico. Mas é preciso deixar claro que são raros os casos mais graves que demandam internamento, e com pouca frequência eles surgem na infância mais precoce. A adolescência, no entanto, é uma fase em que esses casos começam a aparecer em maior volume e, caso exista demanda para internamento, a situação criada é gravíssima: simplesmente não há leitos adequados para pessoas nessa faixa etária. A escassez de leitos na saúde pública se contrapõe ao significativo aumento de leitos psiquiátricos privados para absorver essa demanda reprimida.
O paradoxo é que, ao se defender o aumento de leitos do SUS, um dos argumentos mais utilizados é que psiquiatras querem desconstruir os ditos avanços alcançados na assistência mental no sistema público em prol de ganho financeiro. A ironia é que, hoje, é justamente a rede privada quem está lucrando com o modelo vigente.
Outro argumento utilizado para atacar práticas já consolidadas no ramo da psiquiatria é que se está realizando uma abordagem biológica reducionista da psique humana. Ora, se existe algo que não é reducionista, é o entendimento da mente e do cérebro à luz da neurociência, mas, mesmo com inegável avanço desse campo do conhecimento, o caminho para a compreensão completa ainda é longo: não existem cérebros capazes de desvendar o funcionamento do próprio cérebro. E, de qualquer forma, o avanço da neurociência não negligencia, tampouco refuta, outras correntes teóricas sobre a psique humana. Na verdade, ela a complementa.
Leitos psiquiátricos em hospitais em geral, eram e ainda são insuficientes
Por isso, nos últimos anos, conquistamos alguns avanços: a inclusão de novas residências terapêuticas cresceu 40%, um passo essencial para acabar com o asilamento. Foi criada também a modalidade Caps IV, funcionando 24 horas por dia com equipes completas para proporcionar o tratamento adequado e uma alternativa para aqueles que estão em regiões afetadas por drogas.
Dentro desse cenário, é compreensível que a população tenha receio ao ouvir termos como “internamento psiquiátrico” ou “eletrochoque”: o trabalho para difamar esses métodos foi bem feito, e por vezes eles mereceram tal tratamento. Porém, estamos falando de procedimentos embasados na literatura médica, com dados científicos robustos e replicados. Por trás do discurso opositor, normalmente, se encontram defensores da “reforma psiquiátrica”. A psiquiatria, como toda e qualquer área da ciência, não precisa ser reformada. Ela deve, claro, evoluir.
O que no passado fora reformado foi o modelo de assistência mental oferecido pelo SUS – infelizmente, pendendo para um lado com viés ideológico e sem bases científicas concretas; a desassistência criada na saúde pública por esses movimentos, vale lembrar, só favoreceu a saúde privada.
É hora de refletir e encontrar um ponto de equilíbrio. Foi assim em todos os países desenvolvidos que, felizmente, voltaram atrás e optaram por ofertar uma rede completa, contemplando todas as necessidades e possibilidades dentro de um campo extremamente complexo como a saúde mental – que, em hipótese alguma, pode ser contaminado por movimentos ideológicos.
A população – principalmente os mais carentes e necessitados – agradece.