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 | Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas/ Arquivo
| Foto: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas/ Arquivo

Quando analisamos o impacto das políticas de saúde implementadas em nosso país nas últimas décadas, um dos destaques, sem dúvida, é a política antitabagista. Como resultado, a prevalência do tabagismo na população adulta caiu pela metade em duas décadas. É uma das mais importantes vitórias da saúde pública brasileira.

Mas essa importante conquista se encontra ameaçada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que, em nome de empresas multinacionais do tabaco, tomou uma iniciativa que presta um enorme desserviço à saúde pública brasileira e à soberania do país. Refiro-me à ação que tramita no Supremo Tribunal Federal, na qual a CNI questiona a autoridade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária na regulamentação de produtos de tabaco e busca invalidar norma desta agência que proíbe o uso de aditivos de sabores e aromas em cigarros. Há quase quatro anos a comunidade de controle do tabaco aguarda uma sentença do STF. Depois de entrar em pauta três vezes, a última delas em junho, e não ser realizado, o julgamento está marcado para 17 de agosto. Torcemos para que o STF tenha a clareza de perceber a importância da Anvisa e decida favoravelmente à medida.

Com a norma – a RDC 14/2012 –, o Brasil se alinhou à Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, da qual é signatário, e com a posição de vários países em relação ao tema. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma lei de 2009 proibiu o uso de aditivos de sabor nos cigarros (exceto o mentol) e conferiu amplos poderes à Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula medicamentos e outros produtos) para restringir, proibir ou regulamentar aditivos, ingredientes e constituintes de produtos de tabaco, visando à proteção da saúde pública.

A iniciação precoce ao consumo de tabaco é uma questão de saúde pública

O uso de aditivos faz parte da estratégia de negócio dos fabricantes de cigarros para aumentar a atratividade e palatabilidade dos produtos que comercializam e, com isso, atrair novos consumidores, pois essa medida torna mais fácil a iniciação ao tabagismo. Leia-se, é uma estratégia deliberada para iniciação de jovens à dependência do tabaco.

Os aditivos que conferem sabor e aroma em produtos do tabaco, tais como cravo e menta, atraem os jovens para o consumo. Pesquisa realizada em 2012 pela Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto Nacional de Câncer, com estudantes entre 13 e 15 anos de idade, revelou que 58,2% dos meninos e 52,9% das meninas preferem cigarro com sabor, e 60,8% dos estudantes que compram cigarros com aditivos apontam o sabor como o ponto alto do cigarro. Se cravo e menta são permitidos na alimentação, outro efeito há quando adicionados ao cigarro, tanto por confundirem o consumidor pela similaridade do produto com balas e outros produtos comestíveis, como na combustão, com a queima do cigarro, que torna esses aditivos tóxicos à saúde.

A iniciação precoce ao consumo de tabaco é uma questão de saúde pública, pois, além dos danos inerentes ao tabagismo (são mais de 50 doenças relacionadas ao tabagismo), também se trata de um produto que causa forte dependência. Por isso, o tabagismo é considerado uma doença pediátrica, pois quase 90% dos fumantes regulares começam a fumar antes dos 18 anos. Quem inicia o tabagismo na adolescência tem maior probabilidade de se tornar fumante de forma definitiva.

Leia também:Sabor de fumaça (artigo de Marcos Moraes, publicado em 14 de setembro de 2011)

Leia também:Evidência científica e regulação (artigo de Luis Carlos Heinze, publicado em 28 de maio de 2013)

A identificação dos aditivos a serem proibidos depende de conhecimento técnico, de estudos e evidências científicas, o que demonstra o caráter específico da norma que não poderia decorrer de atuação do Poder Legislativo, mas sim da agência reguladora responsável, a Anvisa, que possui técnicos especializados em produtos de tabaco.

Ao editar a norma, a Anvisa atuou dentro da finalidade legal da sua atividade regulatória, que é a de proteger a população para evitar antecipadamente a ampliação de prejuízos à saúde, como o estímulo ao tabagismo e aumento de sua prevalência no país. Esse é também o entendimento da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e do Senado Federal, que assim se manifestaram no processo que tramita no Supremo Tribunal Federal.

Com o uso de aditivos, a indústria do tabaco transforma um produto já letal e viciante em algo ainda pior, atraindo novos consumidores e expondo os fumantes a um risco ainda maior de dependência, doenças e morte. Por isso, a pretensão da CNI implica, segundo parecer da AGU, “em total inversão do objetivo da saúde pública, uma vez que possibilitaria às indústrias de tabaco o incremento contínuo da atratividade e até mesmo da falsa impressão de que seus produtos são benéficos à saúde”.

No caso desta ação, a CNI afronta a saúde pública e a soberania do Estado brasileiro na definição das políticas de controle do tabagismo.

José Gomes Temporão, médico sanitarista, é ex-ministro da Saúde.
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