Ouça este conteúdo
“Há poucas coisas mais raras neste mundo do que ouvir um debate racional sobre vivissecção.” (C. S. Lewis)
A Sociedade Internacional Humana (HSI) divulgou recentemente o curta-metragem Save Ralph, uma animação que tem o objetivo de combater testes laboratoriais, especialmente o de cosméticos em animais. Essa prática é conhecida no meio científico como vivissecção.
A peça foi escrita e dirigida por Spencer Susser. Taika Waititi interpreta o personagem principal: um coelho cego de um olho, surdo de um ouvido e com queimaduras químicas nas costas, chamado Ralph. A estratégia de marketing do curta é humanizar e pessoalizar o animal para obter mais impacto emocional de quem assiste.
Ralph pensa, fala e argumenta como um ser humano; ele tem uma casa, se veste como um homem comum, escova seus dentes, toma seu café da manhã como qualquer ser humano e, por fim, vai ao trabalho em um laboratório de testes. Ralph também racionaliza seu sofrimento e não questiona o negócio da família que o está matando.
Porém, seus colegas de trabalho, outros coelhos – dublados por Ricky Gervais, Zac Efron, Olivia Munn, Tricia Helfer e Pom Klementieff –, não são tão fatalistas como Ralph; querem escapar de seu destino e clamam por ajuda. Em determinada parte do curta, Ralph reflete sobre seu sofrimento e diz: “No fim das contas está tudo bem. Fazemos isso pelos humanos, certo!? São muito superiores a nós, animais”.
Essa é uma crítica implícita do produtor à teoria de superioridade de raça e as ações justificáveis com ela. Afinal, como podemos compreender esse assunto de modo racional? A superioridade de raça é uma falácia? Ou o uso da mesma pelo darwinismo desembocou em utilitarismo? Estamos corretos em fazer uso de animais em laboratórios?
Primeiro, é preciso que entendamos o problema que a HSI quer combater. Em linhas gerais, vivissecção é a prática de utilizar um animal vivo com o propósito de realizar estudos, ou seja, utilizá-los para realizar testes laboratoriais (com drogas, cosméticos, produtos de limpeza e higiene). A origem da prática remonta ao século 4.º a.C. com Aristóteles e, depois, com Galeno no século 1.º d.C. Ao longo da história, várias vertentes trabalharam o tema de diferentes perspectivas: científica naturalista, ética secularista e biológica utilitarista.
Atualmente, a questão da vivissecção tem dividido a sociedade e os cientistas em três grupos: os vivisseccionistas (defensores da vivissecção), os abolicionistas e os defensores dos 3Rs (Reduction, Refinement, Replacement, ou “redução, refinamento e substituição”). Para compreender esse dilema, tomo emprestada a argumentação de C. S. Lewis em seu ensaio Vivisection, de 1947. Nele, Lewis uniu esforços aos do grande autor de romances infantis do século 19 Lewis Carroll (1832-1898), em protesto contra a aplicação de torturas a animais.
Para Lewis, a abordagem do tema começa polêmica devido aos sentimentos envolvidos na reflexão. As confusas vozes dos sentimentos atrapalham a consideração dos princípios lógicos da vivissecção. Dificilmente, na nossa sociedade sentimental, um vivisseccionista consegue debater racionalmente com um abolicionista, ou vice-versa. Devido ao culto ao sentimento que prestamos em nossa era moderna, não nos dedicamos ao tema com racionalidade. Esse é um fato identificado pelo psiquiatra Theodore Dalrymple em seu livro Podres de Mimados – As consequências do sentimentalismo tóxico. Há também de se levar em consideração a presente “era do pet”, em que os filhos são os cachorros, e o amor, a tolerância e os relacionamentos humanos são substituídos por interações com animais. Tudo isso torna o assunto muito difícil de ser discutido nos dias de hoje.
Lewis levanta a seguinte questão: se a dor, independentemente de qual seja, é um mal, deve haver uma boa justificativa para infligi-la a alguém, pois, apesar de ser um mal, ela pode ser benéfica em alguns casos. Ele cita o exemplo do dentista que inflige uma dor ao paciente, mas a justifica pelo benefício da saúde.
Todavia, a vivissecção não lida com a dor humana, mas com a dor animal; e a sua justificativa é de que é correto uma espécie sofrer para outra ser feliz. Essa é a linha de raciocínio do naturalismo darwinista quando lida com questões de ação humana na ciência: “Devido a essa luta [pela existência], as variações, por menores que sejam e qualquer que seja a causa de que procedam, se são em algum grau proveitosas aos indivíduos de uma espécie em suas relações infinitamente complexas com outros seres orgânicos e com suas condições físicas de vida, tenderão à conservação destes indivíduos”, escreve Charles Darwin em A Origem das Espécies.
Para Lewis, contudo, “a prática da vivissecção expunha uma contradição interna do naturalismo darwinista: ao mesmo tempo em que enfatizava a proximidade de seres humanos a animais, o darwinismo também afirmava a suprema autoridade dos humanos para fazer com os animais o que bem entendessem”, escreve Alister McGrath, biógrafo de Lewis.
Histórica e cientificamente falando, é inegável que a vivissecção proporcionou várias descobertas médicas e biológicas. Contudo, um benefício não pode ser justificado por si mesmo, mas pelos seus meios. Hitler desenvolveu a economia da Alemanha nazista como em nenhum outro momento da história, mas quais meios ele utilizou para tal fim?
Há uma segunda linha de raciocínio sobre a vivissecção, que é a cristã. Na perspectiva cristã (ou criacionista), Deus criou a natureza e estabeleceu uma ordem hierárquica entre seres humanos e animais, sendo o ser humano uma raça superior, à imagem e semelhança do próprio Criador. Até aqui, alguém pode pensar que o quadro teórico criacionista em nada se diferencia do quadro teórico darwinista. Porém, a visão cristã da hierarquia natural gera uma responsabilidade do ser humano, e não um direito. Como sustenta Alister McGrath em A Vida de C. S. Lewis: “Para Lewis, a verdadeira marca da primazia de seres humanos sobre os animais é ‘o reconhecimento de deveres para com eles que eles não reconhecem em relação a nós’.” Essa concepção é percebida também no romance infantil de Lewis, As Crônicas de Nárnia: “O retrato que ele faz de personagens em Nárnia é em parte um protesto contra as afirmações superficiais do direito da humanidade de fazer o que lhe aprouver com a natureza. Enquanto os vivisseccionistas viam os animais, como ratos, simplesmente como material para experimentos de laboratório, destituídos de qualquer sentimento íntimo ou valor intrínseco”, escreve McGrath.
Isso significa que, enquanto o quadro teórico darwinista resulta em utilitarismo com a natureza, a visão do criacionismo implica em responsabilidade com a criação. Parece que vivemos na era darwinista e da vitória da vivissecção que, como disse C. S. Lewis, “marca um grande avanço rumo ao utilitarismo rude e amoral perante o mundo antigo da lei ética; triunfo em que nós, assim como os animais, sendo Dachau e Hiroshima as conquistas mais recentes”.
*Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.