Em uma democracia madura e funcional, a indagação acima teria viés meramente acadêmico, pois impensável que a maioria do povo resolvesse, por motivos diversos, rejeitar majoritariamente as candidaturas oficialmente registradas. Infelizmente, não vivemos tempos de normalidade institucional. Embora a Constituição preveja a harmonia entre os poderes (artigo 2º), é fato de relevo a recorrente conflitividade ostensiva entre altos agentes da República.
Despidos de purismos infantis, é cediço que a política não é praticada por anjos ou monges em mosteiros, mas por pessoas de carne e osso, com virtudes e vícios, entre medos e ambições; logo, compreensível que a errante natureza humana conduza o processo político por caminhos sinuosos a atritos inevitáveis que, todavia, não podem prejudicar ou impedir consensos mínimos ao bom convívio social.
Em página clássica, a visão superior de Louis Brandeis bem pontuou que “a convenção de 1787 adotou a doutrina da separação de poderes não com o fito de promover eficiência, mas para evitar o exercício do poder arbitrário. O objetivo não é evitar atrito, mas garantir o povo contra a autocracia por meio do atrito inevitável resultante da distribuição dos poderes governamentais entre três departamentos”. Ou seja, o tensionamento institucional entre os poderes da República é uma condição natural do jogo democrático. Em outras palavras, antes de perfeita, a democracia há de ser possível. E só há possibilidade com diálogo, divergências e entendimento.
Agora, quando a política se mostra incapaz de gerar um ambiente público de justiça, decência, cordialidade, segurança e bem-estar, é natural que o povo passe a questionar os agentes de poder. Ora, se já pagamos quase 40% do PIB em impostos e tributos, não mereceríamos serviços públicos de melhor qualidade? Onde estão as escolas públicas com bom ensino a nossas crianças? Onde está o transporte público eficiente? Onde está a segurança nas ruas? Onde estão os hospitais sem filas ou esperas intermináveis? Enfim, onde está o ideal democrático?
As perguntas poderiam prosseguir ao infinito no deserto das respostas competentes. Impressiona a apatia dos partidos políticos, que deveriam ser a primeira instância de reação às insuficiências da democracia; deveriam selecionar e melhor preparar os candidatos à vida pública responsável; deveriam expulsar quadros corruptos; deveriam rejeitar a inscrição de desonestos; deveriam prestar contas fidedignas à Justiça Eleitoral. Deveriam, mas não fazem. Aliás, há partidos verdadeiros no Brasil? E há como ter uma democracia digna com partidos mercenários? Sim, é logico que ainda existem bons quadros, mas a imagem da floresta é absolutamente desoladora.
O fato é que o povo brasileiro está cansado de ser reiteradamente enganado. A mentira contaminou o sistema nervoso da democracia política. O cidadão honesto e trabalhador não mais se sente representado. Olha para política e não vê esperança. Qual será o estímulo que terá, então, para ir votar no dia da eleição? Escolher mais do mesmo? Ou será que entre a estupidez e a imoralidade haverá alguma expectativa válida de futuro?
Em tempo, embora os hábitos correntes sejam outros, cumpre registrar que o presidente da República é um símbolo da nação; deve refletir preparo, sabedoria, decência, compreensão de mundo, urbanidade de tratamento, coragem para enfrentamentos políticos inadiáveis, prudência para não incorrer em erros evitáveis, serenidade para aceitar reveses e inteligência para reverter situações desfavoráveis. Mesmo na dor, há de ser exemplar. Analisando os altos encargos presidenciais, a inigualável cultura política de Paulo Brossard bem pontuou que “buscando identificar-se com os interesses nacionais, valorizando-os numa perspectiva que relacione o pretérito ao porvir, condicionado pelas possibilidades do presente, comprimido quiçá pela conjuntura”, deverá o presidente “guardar o recato, a discrição, quem sabe o segredo” e “na solidão desses momentos decisivos, de responsabilidades intransferíveis, ao tomar a decisão, que é sua, não recorrerá senão ao seu tino, ao seu saber, à sua intuição, à sua experiência, às aspirações do seu patriotismo”.
Voltando à realidade, o que temos hoje no país é muito pouco entre alternativas terríveis ou insatisfatórias. Decididamente, o Brasil e os brasileiros merecem mais.
Neste quadro sem lustro, não é de duvidar que, em outubro próximo, a abstenção, os votos brancos e nulos vençam a eleição. Ou seja, se isso acontecer, o povo brasileiro terá majoritariamente rejeitado as candidaturas postas. Não se ignora que o artigo 77, §2º da Constituição Federal de 1988 prevê que será considerado eleito presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, “não computados os em branco e os nulos”. Todavia, a mesma Constituição, ao versar sobre seus Princípios Fundamentais, determina que “todo poder emana do povo”.
Por assim ser, eventual manifestação majoritária do povo brasileiro no sentido da rejeição volitiva das candidaturas apresentadas não parece ser fenômeno político de livre desprezo constitucional. Ao contrário, traduzirá autêntica expressão de soberania popular, cujos efeitos, à luz de um constitucionalismo ético e integrador, poderia, inclusive, suscitar a hipótese de convocação urgente de nova eleição com também novos candidatos. Não se trata, frisa-se, de opinião conclusiva, mas, diante da grave decadência institucional em curso, se faz imperativo o exercício do pensamento crítico de forma a tentar fazer luz onde paira a escuridão.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.
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