Após a condenação de um certo parlamentar, esperava-se que a mensagem fosse claríssima: quem atentar contra a democracia e suas instituições colherá revezes consideráveis, com penas até mesmo de prisão. A mensagem dissuasória, porém, não sobreviveu a um par de dias, diante da inédita concessão de indulto individual, pelo presidente da República, ao seu aliado político.
Num regime constitucional, as liberdades fundamentais – dentre elas a livre expressão – foram concebidas como um escudo contra os desmandos do Estado. Mas nada impede que sejam usadas no sentido oposto, para a defesa da tirania. Karl Popper, aliás, denominou esse risco de o “paradoxo da democracia”: é fácil defender ditadura vivendo numa democracia; difícil mesmo é defender a liberdade num regime de exceção.
O Direito batiza o uso indevido das liberdades de “abuso de direito”: usar a liberdade de expressão para instigar o fechamento de um tribunal certamente não é medida aceitável, mas evidente expressão de má-fé. Por essa razão, é preciso desde já rechaçar o argumento cínico de que se está diante de um “crime de opinião”. O abuso de direito é uma leviana pirataria das liberdades, que rende cópias tão enganosas e nocivas quanto bolsas de grife falsificadas.
Se o decreto de graça constitucional é manifestação da independência do Executivo, cujo mérito, em princípio, não se sujeitaria ao Judiciário, seu manejo deve se dar nos limites da Constituição. E este ato é questionável sob relevantes aspectos. Em primeiro lugar, por seu flagrante desvio de finalidade, já que editado com o fim de favorecer aliado político. Em segundo lugar, por violar a moralidade e a finalidade pública que devem orientar todos os atos estatais. Por último, e mais grave ainda, por colidir com a cláusula de garantia do regime democrático.
A democracia é uma loja de cristais frágeis, com corredores apertados e povoados por elefantes.
A democracia, erigida a princípio sensível (artigo 34, VII, “a”, da Constituição), precisa ser capaz de se defender de seus algozes. Sua violação autoriza até mesmo a gravosa medida de intervenção federal a mando do STF, não sendo admissível, pois, que crimes contra a ordem democrática sejam objeto da clemência de um presidente que jurou defender a Constituição. A insuscetibilidade de tais crimes ao indulto é cláusula de garantia implícita do sistema, e nunca é demais relembrar que poderes não são ilimitados e que as garantias inscritas na “Constituição não excluem outras decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” (artigo 5.º, §2.º, da Constituição).
O deputado seguirá sem poder se candidatar a qualquer cargo eletivo, eis que, tendo sido condenado por órgão colegiado por crime contra a administração (artigo 344, do Código Penal), foi alcançado por inelegibilidade (artigo 1.º, “e”, item 1, da Lei da Ficha Limpa) e, conforme entendimento jurisprudencial pacífico, os efeitos secundários da condenação não são “apagados” com o indulto (Súmula 631 do STJ). Desta má escolha, portanto, o povo brasileiro estará livre nas urnas, mas toda essa conflagração nunca foi sobre um deputado do baixo clero.
O desfecho desse caso não se limitará ao condenado: repercutirá sobre toda a matilha raivosa que é diuturnamente atiçada a não reconhecer um eventual resultado eleitoral adverso em outubro. É a mensagem presidencial urdida nas entrelinhas, de garantia de impunidade às suas hostes golpistas, que deve nos assombrar. Se os poderes constituídos se descuidarem em sua vigilância, não sobrará quem “indulte” a nossa frágil democracia.
Danilo Morais dos Santos, mestre em Ciência Política, é doutorando em Direitos Humanos e Cidadania, e professor da pós-graduação do Ibmec-DF.
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