[Nota prévia: este texto é uma continuação de "Uma história da afinidade das ciências sociais com o fascismo".]
À luz das realidades inegavelmente bárbaras do fascismo, e confrontados com as claras implicações de suas descobertas, os cientistas sociais se deram conta de que sua posição era indefensável. Portanto, defrontaram-se com uma escolha. As duas opções mais óbvias refletiam a divisão intelectual que havia entre as ciências sociais constituídas, de um lado, e o ressurgimento da tradição da lei natural, de outro:
- Abandonar o relativismo do seu “naturalismo científico” para dar um fundamento metafísico, alternativo, sobre certas verdades imutáveis da natureza, e portanto ficar do lado da igual dignidade humana e da democracia; ou
- Continuar em seu caminho de rejeitar a democracia como uma consequência de seu compromisso de “seguir a ciência” e com as premissas relativistas básicas do “naturalismo científico” materialista.
A comunidade das ciências sociais terminou por escolher “nenhuma das duas”. Em vez disso, nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial, os principais acadêmicos e intelectuais públicos seguiram o caminho que fora sugerido primeiro por John Dewey: a democracia poderia e deveria ser defendida como uma política “anti-fundacional”, baseada na rejeição da “busca por certeza” ou de qualquer “absolutismo teórico”. De fato, o “absolutismo” virou a bête noire das ciências sociais, indicando não só uma mente fechada, mas até mesmo as fundações do fascismo. O “autoritarismo” da era clássica (p. ex., monarquia) era simplesmente o precursor da ordem política autoritária mais recente (e mais viciosa) que jamais se viu, o fascismo.
Os principais cientistas sociais e divulgadores, então, buscaram ligar uma defesa do materialismo relativista à democracia, invertendo a conexão anterior entre o naturalismo científico e uma crescente atração pelo fascismo. Esse capítulo anterior da história das ciências sociais foi amplamente esquecido, graças às premissas inerentemente anti-históricas e profundamente presentistas contidas em sua metodologia.
Como Purcell resume a posição comum da ciência social do pós-guerra, “fundamentava-se num completo naturalismo; não exigia a aceitação de nenhuma teoria ética ou sistema filosófico; e, melhor de tudo, reivindicava que o absolutismo racional e religioso era o real inimigo da democracia. Em resumo, a equação absolutista-autoritário apelou para para todas as convicções intelectuais e emocionais de um grande número de acadêmicos dos EUA e ao mesmo tempo permitiu-lhes a defesa tanto do naturalismo como da democracia ao alinhar seus críticos absolutistas com o totalitarismo europeu.” [As referências bibliográficas em inglês podem ser lidas no original. (N. t.)]
Nas décadas seguintes à II Guerra, desenvolveram-se três compromissos básicos desse novo alinhamento:
- Primeiro, acreditou-se que só alegações tentativas (tentative claims), sempre revisáveis e nunca “absolutas”, poderiam fundamentar a democracia. Os pensadores reviveram o argumento de Oliver Wendell Holmes de que a única base de uma sociedade democrática seria a “negação” completa de normas morais universais, em favor de soluções “pragmáticas” contínuas e temporárias.
- Por conseguinte, tinha-se o “absolutismo” teórico como a causa da política autoritária, à qual estaria inerentemente ligado, tanto no âmbito internacional quanto doméstico.
- Em vez dos “absolutos” políticos, que exigiam um acordo a priori, para manter essa ordem em coesão, bastariam uma ampla “cultura democrática” da tolerância, de não julgar, e de pluralismo. Um mundo desnudado de todo acordo político poderia depender apenas da “sociedade civil” para dar uma liga suficiente para manter uma sociedade baseada quase que só na concordância quanto à discordância.
O resultado foi passar da defensiva ao ataque. Um grande esforço da ciência social do pós-guerra foi identificar e extirpar todo o suposto autoritarismo que se baseasse em “absolutos”. Surgiu um esforço concertado que ligava o fascismo (e no fim, para muitos, o comunismo) ao “absolutismo”. Mas o projeto também tomou uma forma doméstica própria, ao voltar-se contra seus críticos mais precoces, que chamaram atenção à atração inicial das ciências sociais pelo fascismo que elas agora denunciavam: os católicos. A tradição da lei natural foi percebida como o principal rival doméstico do materialismo, já que ganhou as ciências sociais em debates anteriores. Numa reviravolta, os principais cientistas sociais agora fizeram do catolicismo o alvo central de sua abrangente crítica ao “absolutismo”.
Ironicamente, enquanto os principais defensores da lei natural se colocaram contra o fascismo (incluindo as inclinações pelo fascismo da ciência social mainstream), agora empreendia-se um esforço concertado para ligar o catolicismo ao “autoritarismo” em geral e ao fascismo em particular.
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Aqueles que criticaram severamente o relativismo naturalista dos cientistas sociais antes da guerra eram pintados como defensores de uma filosofia que armou os fundamentos para todos os autoritarismos modernos, fascismo incluso. As raízes do fascismo residiriam na Europa pré-moderna, a tenebrosa tradição que a América, moderna, progressista, gloriosamente quebrou. Uma série de pensadores forjou a ascensão do fascismo europeu como uma continuação da tradição absolutista da Idade Média, com frequentes acusações de hierarquias, oposição à ciência, supressão de ideias, Inquisição e atmosfera geral de autoritarismo. Figuras como Adler e Hutchins – que apontaram as inclinações fascistas dos cientistas sociais de antes da guerra – agora eram rotulados como “dogmáticos e obscurantistas” que, de modo perigoso, abraçaram as “tendências medievais dos fascistas e comunistas”. O pluralista deweyano Horace Kallen argumentou que os católicos eram os mais “poderosos e portanto os mais perigosos” entre os absolutistas. Afirmou que “sua intenção é um fascismo espiritual, um totalitarismo moral e intelectual, que tem seus pares entre os nazistas e sua laia.” O filósofo Sidney Hook viu a Igreja como uma das instituições mais perigosas e autoritárias que restavam no mundo moderno, chamando-a de “maior e mais antigo movimento totalitário da História”.
Uma ampla gama de lideranças intelectuais via o catolicismo como uma ameaça primária às bases relativistas da democracia – e, sem dúvida, estariam certos, se a democracia só pudesse ser defendida sobre bases relativistas. Fizeram-se conferências e simpósios para explorar as formas do autoritarismo no mundo moderno, com o catolicismo aparecendo, não raro, num papel proeminente de sistema de crença fundado em absolutos que precisam ser “negados”. Daniel Boorstin viu uma continuidade entre a Suma Teológica de São Tomás e a ascensão de Hitler e Stalin (dois absolutistas), enquanto um importante cientista social, Gabriel Almond, viu a tradição europeia do autoritarismo, manifesta no séc. XX como fascismo e comunismo, como originadas das suas raízes de civilização católica.
Esses argumentos tiveram efeito. Criados para reverter a ascensão do status das teorias de direito natural, e em especial a sua crescente influência sobre o ensino superior, um crescente número de católicos parece ter internalizado a ligação entre o “absolutismo” e o fascismo e comunismo, tentando diminuir a reputação de “autoritária” da Igreja. Na prática, isso significou abafar ou omitir os ensinamentos da autoridade da Igreja em meio àquilo que estava se transformando no novo consenso deweyano. De modo, talvez, pouco surpreendente, um católico importante que aceitou e até abraçou o novo consenso foi o Pe. Theodore Hesburgh, por muito tempo reitor da Universidade de Notre Dame.
Como relata Purcell, "em 1960, o Rockefeller Brothers Fund publicou um projeto de estudos especiais sobre a natureza do governo democrático que revelou até que ponto triunfou a teoria relativista. 'A experiência mostra que os homens podem ser igualmente leais a ideais democráticos, mesmo que não saibam dar diferentes razões últimas para a sua lealdade', afirmou o relatório."
Entre os que assinaram o relatório estava Hesburgh, que, por meio do seu endosso, aquiesceu ao que viria a ser a principal narrativa que terminaria por justificar a democracia liberal “anti-fundacional” do século XX: a relação entre as “guerras religiosas” e os absolutismos do século XX.
Segundo o relatório – numa passagem endossada pelo padre reitor da mais importante instituição católica de ensino superior [dos EUA] – havia uma relação direta entre as causas profundas de conflitos centenários acerca de religião e a ascensão final do totalitarismo moderno: "Como indicam as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII e os expurgos ideológicos em sociedades totalitárias atuais, o esforço para impor unidade de crença em matéria de religião e de filosofia, longe de unificar uma sociedade, pode levar a um extraordinário derramamento de sangue e brutalidade."
Essa alegação, em particular, viria a definir a ideia de democracia liberal como necessariamente evitando todas as “doutrinas abrangentes” (segundo Rawls) e repousando naquilo que Judith Shklar, teórica política de Harvard (com a aprovação do filósofo Richard Rorty) viria a chamar de “liberalismo do medo”: medo do absolutismo que deu origem às guerras religiosas, e que reapareceram na forma do totalitarismo moderno. A antiga ligação entre o “relativismo” e o fascismo – tão evidente na ciência social mainstream do início do século XX – foi apagada com sucesso e atirada no “buraco da memória”. Seus sucessores agora atiravam a acusação de fascista contra aqueles que se levantaram contra os cientistas políticos, sociólogos e psicólogos progressistas – isto é, os que admiravam o fascismo europeu como um regime preferível.
E ainda assim, um pouquinho abaixo da superfície, as novas e aparentemente democráticas ciências sociais retiveram muitos, se não a maioria, dos principais compromissos dos seus precursores antidemocráticos. Ficaram firmes no relativismo, negando quaisquer verdades metafísicas imutáveis que embasassem a ideia de dignidade humana. Seu cientificismo inclinou-as à crença de que todo material era manipulável, sem qualquer coesão, ordem ou significado que ditasse limites ou restrições. Eram progressistas, favorecendo de modo inerente o domínio social e até político pelos mais esclarecidos, aqueles que se diferenciavam da massa humana que retinha crenças conservadoras por causa de preconceitos não examinados e hostilidade à mudança. Como nota Purcell, “a teoria relativista criou uma nova admiração pelas elites, por grupos de muita formação e de proeminência social, em oposição às massas psicologicamente descontentes e sem educação formal. Uma vez que um relativismo sofisticado, com toda probabilidade, só seria encontrado entre os grupos com mais formação, então só eles poderiam entender de modo pleno a natureza democrática da política.”
De modo ainda mais digno de nota, seu entusiasmo pela democracia agora reside nas mesmas características da “gente comum” que inicialmente levaram seus predecessores a condenarem a democracia: as evidências da apatia cívica, ignorância, desinteresse e volubilidade eram agora vistas como características positivas e até como signos da democracia. Redescrevendo os mesmos fenômenos que levaram os cientistas sociais prévios a condenar a democracia, seus epígonos agora abraçaram uma forma de democracia na qual, de fato, elites como eles mesmos continuariam no poder. Passividade social e política, ignorância e inconstância foram tomados como “consentimento”, sancionando de fato a própria abordagem elitista e expert da política que inicialmente levou os cientistas sociais a abandonarem a democracia.
Estes compromissos centrais também deram origem a um aparente paradoxo ao qual todos nos acostumamos: vários intelectuais importantes, personalidades midiáticas, professores, habitués de instituições liberais comuns – a “elite poderosa” de hoje – que, sem hesitar, passaram a descrever resultados eleitorais indesejáveis como antidemocráticos. Quando se acha que resultados políticos introduzem formas de “absolutismo”, então até os resultados com sanção popular são rotulados como “antidemocráticos”. Em vez de permitir que a palavra “democracia” seja maculada ou confundida, o rótulo “populista” foi introduzido como um dublê para descrever resultados democráticos que não batem com a definição substantiva da democracia como uma ordem social relativista e “anti-absolutista”.
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Numa expressão sugestiva, Purcell descreve o resultado dessas posições como uma forma de “relativismo institucionalizado”. Embora pareça endossar a preferência individual pela escolha livre (a liberdade e até a necessidade de discordar, e o que Rawls chamou de “o fato do pluralismo”), com o tempo, o compromisso com o materialismo se tornou “institucionalizado” de maneira cada vez mais autoritária, levando (mais uma vez) à paradoxal situação que é familiar demais hoje: a intolerância dos supostos tolerantes.
No início, o ethos geral do “viva e deixe viver” prevaleceu entre os deweyanos de meados do século.* Durante os anos 1950 e 1960, os cientistas sociais enfatizaram a existência salutar de “pluralismo” de grupos, uma levedura da democracia liberal que impedia a emergência de alguma posição “absolutista”. Assim, os cientistas sociais àquela época eram tolerantes até com estilos de vida “conservadores” e religiosos (dentro de limites) que deixassem diferentes grupos viverem seus estilos de vida, desde que nenhum aspirasse à capacidade de impor sua “doutrina abrangente”. Teorias populares em ciência política enfatizaram o sucesso de “pluralismo de grupo de interesse” como um signo do sucesso do sistema estadunidense. [* Dito isso, o próprio Dewey é bem claro quanto ao fato de que as pessoas que ele rotula como "selvagens", aqueles que não se "conformam" à natureza, preferindo impor-lhe suas preferências numa forma alterada, são, com justiça, extirpados dos povos "civilizados". Como seu confrade intelectual, John Stuart Mill, a tolerância se estende só aos tolerantes, que têm um profundo compromisso com a condição de mudança constante e "progresso". Cf. John Dewey, Democracy and Education, cap. 4. (N. a.)]
De nossa perspectiva hoje, esse período foi um interregno no estabelecimento do “relativismo institucionalizado”. Com o tempo, as ciências sociais e os líderes intelectuais miraram todas as formas de suposto absolutismo – não só aqueles que poderiam se expressar politicamente, mas também o “absolutismo” nas próprias subculturas. Em décadas recentes, expressões públicas de “absolutismo” religioso e cultural (absolutismo segundo a visão da elite intelectual) estão cada vez mais fora dos limites permitidos, constituindo “dano” e resultando em condições “perigosas” (unsafe) e “traumáticas”. Em nome da democracia, vozes identificadas como absolutistas são caladas ou desconvidadas nos campi e demitidas de empresas.
Esse ethos condiz com o materialismo relativista do mercado moderno e sem fronteiras, e os mais fervorosos participantes da expulsão de qualquer resquício de absolutismo são as grandes empresas. No estado de Indiana, em 2015, empresas como a Apple, a Salesforce e a Eli Lilly conseguiram derrubar uma legislação democraticamente legítima que buscava equilibrar as reivindicações de liberdade religiosa dos fiéis em face das acusações de discriminação: a Lei da Restauração da Liberdade Religiosa, que já existia como um estatuto federal. A pressão de empresas e o êxito em derrubar a lei foram objeto de elogios dos progressistas, que viam como salutar o exercício do poder empresarial sobre o processo político – com Frank Bruni, colunista do New York Times, chamando de “lado positivo da ganância”. Em anos recentes, o uso direto de poder político de uma variedade de formas foi exercido para enfraquecer ou extirpar o suposto “autoritarismo” em tradições religiosas e culturais que, segundo se acredita, contradizem os valores centrais do relativismo democrático. Com o tempo, principalmente por meio do atrito e da “hegemonia soft” do liberalismo, aquilo que outrora foi endossado como relativismo de grupo passou a ser tido como ilegítimo, preferindo-se o relativismo individual. A ordem social, econômica e política – seja por meio da aprovação social, subscrito pela política ou até pela força da lei – trabalhou ativamente para enfraquecer a base grupal do pluralismo e substituí-lo por um ethos de autoinvenção.
Empreendem-se por toda parte esses esforços cada vez mais agressivos, em nome do propósito de promover a democracia – democracia compreendida como um compromisso substantivo com o relativismo materialista e com o “relativismo institucionalizado”. Uma geração mais antiga de cientistas sociais condenou a “fé democrática” de uma tradição americana ainda mais antiga, a qual eles tinham esperanças de derrubar por meio do avanço de uma cosmovisão progressista e elitista. Em meados do século, pensadores como Dewey e seus inumeráveis epígonos proclamaram a plenos pulmões sua “fé democrática”. Não sendo capazes de provar que suas crenças centrais são compatíveis com um igualitarismo central, os cientistas sociais, outrora teimosos e guiados por dados que insistiam em "seguir a ciência", vieram a investir na democracia como "a substância das coisas desejadas, a evidência das coisas não vistas".
Essa “fé” tinha seus zelotes: aqueles que de modo crescente e agressivo buscaram extirpar todos os vestígios do suposto “absolutismo” da sociedade estadunidense. Todas as formas de “autoridade” são ultimamente conectadas com o fascismo, uma acusação que se aplica a quase todo objeto que os herdeiros de Dewey têm por contradição à sua “fé democrática”.
Esse ethos anti-“absolutista” se reflete nos compromissos centrais das ciências sociais hodiernas (e também define as humanidades, que em grande medida aderiram ao mesmo projeto). O que foi uma “fé” nos resultados democráticos do relativismo moral tornou-se a sua religião, tomando precisamente as características que antes projetara sobre o catolicismo: o autoritarismo de cima pra baixo. Esses compromissos foram descritos com grande perspicácia por Christian Smith, sociólogo de Notre Dame, noutro texto subestimado, mas bem legível, no qual um cientista social conta tudo: O projeto sagrado da sociologia americana (no qual poder-se-ia substituir sua discussão da sociologia pela maioria das ciências sociais de hoje, até pela disciplina mais “conservadora”, a economia, que abraça a mesmíssima visão do ego desimpedido). Os compromissos centrais da fé das ciências sociais hodiernas são "a emancipação, a igualdade e a afirmação moral de todos os seres humanos como autônomos, auto-dirigidos, agentes individuais (que deveriam) sair para viver suas vidas segundo seus desejos pessoais, construindo suas identidades favoritas, entrando e saindo de relacionamentos segundo a escolha, e gozando igualmente da gratificação dos prazeres experimentais, materiais e corpóreos."
Forjado como o domínio da escolha, esse projeto de introduzir uma substantiva “fé democrática” que amiúde vai no sentido oposto à vontade popular, e cada vez mais arranca quaisquer vestígios dos preteridos, qualquer resquício do "absolutismo". Se necessário, pela força da lei, pela sanção social e por uma estreita parceria com o poder empresarial. Temos de ser forçados a ser livres, a fim de deixar o mundo seguro para a democracia.
Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.
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