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Sim, o título é uma afirmação. Acho que sim, se Deus não existe, tudo é permitido. Sim, minha afirmação é niilista. Vai encarar?

O leitor com repertório sabe que estou falando do personagem Ivan Karamazov, do romance Os irmãos Karamazov, do grande Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Woody Allen, autor do recente Homem Irracional, é obcecado por esse tema. Como não ser, se você é alguém que pensa a moral para além do credo raso da classe média?

A classe média é aquela que acredita que, se disser para os filhos que a honestidade garante a felicidade, isso garantirá alguma forma de segurança moral e existencial na vida. Não, não garante. Isso não quer dizer que você não deva buscar ser honesto, mas isso quer dizer que não há nenhum “narrador” da vida que garanta absolutamente nada. Nosso “senhor” é o acaso.

Se eu não me sentir culpado e ninguém descobrir o que fiz, haveria algum problema em matar alguém que é “mau”?

Dito isso, voltemos ao problema. Woody Allen recoloca esse problema em seu último filme por meio do professor de Filosofia que o estrela. De niilista deprimido, ele passa a niilista ativo, como diria um nietzschiano. Mas o cineasta termina por escolher Kant (que era ateu, mas não sabia ou tinha medo de saber): se Deus não existe, resta-nos a universalidade da norma categórica, que jamais pode ser quebrada. Não podemos matar porque, se quebramos essa regra, a humanidade mergulha no caos.

Será? O pensamento é perigoso. Melhor concordar com Kant e ir jantar depois do filme. Mas nem por isso podemos fugir do russo Dostoiévski (como diz o filósofo do filme, “o cara que sacou tudo”): e se eu não me sentir culpado e ninguém descobrir o que fiz, haveria algum problema em matar alguém que é “mau” (para facilitar o argumento)?

Woody Allen não acredita no binômio “culpa-perdão” como forma superior de vida moral. Dostoiévski, Victor Hugo, Tolstói e Nelson Rodrigues, entre outros, acreditavam. Para ele, resta Kant e sua mentalidade de classe média, como reconhece a aluna kantiana do longa. Adora dar para o professor, mas não tolera assassinatos, mesmo por uma boa causa.

Apesar de não simpatizar com Kant (prefiro Dostoiévski, Nelson Rodrigues e Nietzsche), o risco de degeneração para a violência é um fato quando a humanidade (que é gado, em termos morais) sai dos limites das normas. Basta pensar em algo banal como o trânsito.

Mas, ainda assim, a questão permanece: e se eu me sentir bem com o que fiz, ninguém descobrir, e o morto “merecer”, por que não?

Claro, posso pôr em dúvida a ideia de que a vítima “merece”, e muita gente canalha já matou milhares em nome do “bem”. No último século, todos os socialistas mataram milhares de pessoas em nome do “bem” – os mesmos que posam de santos no Brasil, porque somos gente ignorante em história.

A questão de Dostoiévski não tem nada a ver com a ideia, errada, de que quem é ateu é mau. Pensar isso é para iniciantes. A questão dele tem a ver com a negação de qualquer validade absoluta da moral. Isso implica a hipótese niilista.

Por outro lado, isso tampouco quer dizer que, ao concordar com o russo, eu esteja caindo em qualquer “desespero existencial”, como assumem os bem resolvidos, que julgam tudo compreender porque leem livros chiques no idioma original. Só espíritos confusos e imaturos julgam a vida e as pessoas pelo que leram.

Pelo contrário: o niilismo torna você imbatível em termos morais, porque lhe faz impermeável a qualquer apelo em nome de qualquer “valor”. A resposta moral do niilista é “estética” (como no filme): faço o que gosto e o que me faz bem e, ao fim, pouco me importa se a pessoa “merece” morrer ou não.

A única resposta consistente ao niilismo é ainda a de Dostoiévski: o niilista é um desgraçado que não é capaz de confiar no mundo (mas isso é uma outra história, que não dá para contar aqui). Dizer para um niilista que ele deve levar em conta as “necessidades” da humanidade é querer brincar com um leão porque você acha ele fofo. Não é à toa que, aos olhos niilistas, a humanidade seja uma grande classe média ridícula, incapaz de gozar de fato a liberdade que só a solidão nos dá.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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