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| Foto: Susan Walsh/AFP

Em meio ao inconcluso último conflito bélico da Guerra Fria, como é considerada a Guerra da Coreia, que juridicamente ainda perdura, não tendo havido armistício ou tratado de paz, o recente encontro dos presidentes-bomba, Donald Trump e Kim Jong-un, em Cingapura, foi celebrado com alívio e esperança, sem fogo e fúria, mas com sorrisos e abraços, a mitigar os imponderáveis riscos de críveis ataques nucleares que se pronunciavam.

Afinal, eis uma boa notícia de política internacional logo após o desastre econômico da reunião do G7, com a notória divisão do Ocidente por conta do mercurial presidente norte-americano, agora contra todos e contra tudo, a incluir vizinhos e aliados. Há quem diga que Trump, com suas tarifas ilegais, a rasgar tratados e desconhecer normas assentes de comércio internacional, esvaziando a Organização Mundial do Comércio e erodindo o multilateralismo, transformou em poucas horas o G7 em G6 ou em G-zero. Com Trump, o Ocidente não precisa de inimigos.

Foram apenas palavras, nada mais que palavras, a adornar compromisso esvaziado de obrigações

Na questão da Península da Coreia, devido à rápida escalada de tensões que se verificou entre Pyongyang e Washington, sem receio de sobrevalorar a crise que continha graves ameaças atômicas recíprocas, a humanidade correu sério risco de novo conflito nuclear, com a paralisia do Conselho de Segurança das Nações Unidas e com o envolvimento ostensivo de China e Rússia. Pelo tamanho do confronto e de seus riscos catastróficos, que preocupou do Papa Francisco ao secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, chegou-se mesmo a esquecer as demais crises, como a guerra da Síria, o Oriente Médio, os dramas de refugiados e a questão do Irã. Não foi sem razão que, ao passar a presidência, Obama considerou o dossiê coreano como o mais preocupante de toda a política externa. Depois, a administração Trump encarregou-se de não facilitar as coisas, com a diplomacia do tuíte e do insulto a nivelar presidentes boquirrotos, chegando a colocar no mesmo patamar um desconhecido ditador periférico e o presidente da maior potência global.

Com o acordo celebrado em Cingapura, versado em singelos quatro pontos, desconstrói-se agora toda uma rota de colisão de superpotências que impossibilitava qualquer avanço rumo à segurança coletiva, não apenas pelo temperamento imprevisível dos envolvidos, mas pela impossibilidade de chegar-se a acordo acerca de desarmamento nuclear da Coreia do Norte de forma “completa, verificável e irreversível”. No entanto, ainda que o ponto central do compromisso atingido no providencial encontro radique na desnuclearização da região, nada de objetivo foi avançado, como tampouco especificaram-se quais garantias de segurança oferecidas por Trump serão utilizadas como moeda de troca ao desarmamento. Foram apenas palavras, nada mais que palavras, como no lamento clássico shakespeariano, a adornar compromisso esvaziado de obrigações, ainda que de imenso significado político, bem por isso anunciado com justificada pompa e circunstância. De claro e imediato, a demonstrar boa vontade das partes, houve apenas louvável acordo humanitário de recuperação de restos mortais de prisioneiros de guerra ou desaparecidos nos combates entre 1950 e 1953, com a repatriação garantida dos corpos.

Leia também: Aurora de novos tempos na Península Coreana? (artigo de João Lopes Nyegray, publicado em 14 de junho de 2018)

Flavio Gordon: A regra de ouro de Gioconda Brasil: Trump e a imprensa brasileira (13 de junho de 2018)

A entente estabeleceu ainda no plano nebuloso das meras promessas que o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, deverá encontrar-se com autoridade de Pyongyang não especificada, o mais breve, e que ambos os países buscarão a reconstrução de relações bilaterais, com referências textuais à promoção da paz, da segurança e do desenvolvimento. Em outras palavras, nada de exigível e concreto, com obrigações jurídicas definidas interpartes; apenas metas a serem atingidas, bem ao sabor da retórica diplomática e da soft law, que exorta e declama, sem prescrever deveres e obrigações. Contudo, na perspectiva de conquistas reconhecidamente auferidas, quebrou-se o isolamento da Coreia do Norte, incorporando seu governo a negociações de paz sem intermediários, conferindo ao Acordo de Cingapura inegável status de evento histórico, em acontecimento fadado, dentro dos limites do possível, a conferir pelo menos uma chance à paz e à humanidade.

Jorge Fontoura é advogado e professor.
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