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Faz sentido acusar alguém de fascista? – as lições de Stanley G. Payne
| Foto: Chris Boese/Unsplash

“Seu fascista!” “Fascistas não passarão!” “Ele não é louco, ele é um fascista!” Que tal essas expressões? Elas dizem algo? Acusar um adversário de fascista virou praxe, diria até, lugar comum no Brasil do século XXI. Mas a questão não é uma jabuticaba nem tampouco recente. O grande romancista, ensaísta, pensador britânico George Orwell (autor, dentre outros, de A revolução dos bichos e 1984) já demonstrava preocupação com essa questão em 1944. Orwell manteve ao longo de alguns anos uma coluna intitulada “As I please” (em uma tradução livre: Como eu quiser) na Tribune, revista criada em 1937 e que durante 80 anos tem estado no centro da política de esquerda na Grã-Bretanha.

Na publicação de 24 de março de 1944, Orwell falou sobre o fascismo e sobre o uso do termo em terras britânicas. Ele escreveu: “Ver-se-á que, tal como é usada, a palavra ‘fascismo’ é quase totalmente sem sentido. (...) Já a ouvi aplicada a agricultores, lojistas, ao crédito social, a castigos corporais, caça à raposa, touradas, ao Comitê de 1922, ao Comitê de 1941, a Kipling, a Gandhi (...), à astrologia, às mulheres, aos cachorros e não sei o que mais. (...) Tudo o que se pode fazer no momento é usar a palavra com certa cautela e não, como normalmente se faz, degradá-la ao nível de um palavrão”.

Usar fascismo como um epíteto pejorativo é uma tática rastaquera, que se origina na antiga União Soviética e se espraia no pós-guerra

Isso é Orwell, tão convocado à destra e à sinistra, clamando em 1944: não tornemos a palavra fascista em um palavrão. Não é preciso muito esforço para ver que esse chamado não foi atendido – pontos para a União Soviética, para o Partido Comunista Alemão e para a ala leninista-stalinista do Partido Comunista Russo. Alguém já aprendeu “como conversar com um fascista” ou “como derrotar um fascista”? A pergunta pode parecer estranha, mas basta uma busca rápida em obras publicadas no Brasil com o tema para se descobrir por que ela não é.

Convido todos a lerem o livro O que é Fascismo: Ideologia e contexto, do renomado cientista, historiador e professor americano Stanley G. Payne, recém lançado no Brasil pela Editora LVM. Stanley George Payne é doutor pela Universidade de Columbia, onde defendeu dissertação sobre o fascismo espanhol. No livro, Payne afirma usar Fascismo com inicial maiúscula para se referir ao “Partido Fascista Italiano e seus antecedentes imediatos, membros e componentes” e com inicial minúscula para os demais casos. Sigo aqui o mesmo critério. A jornada de Payne na academia foi caracterizada por sua curiosidade insaciável pelas convulsões políticas do século XX, particularmente pela ascensão do Fascismo na Europa. Sua investigação meticulosa e a sua análise perspicaz expandiram enormemente a nossa compreensão dessa intrincada ideologia política.

Os estudos de Payne foram marcados por um compromisso obstinado com uma investigação rigorosa e uma exploração diferenciada dos fenômenos históricos. Através do seu trabalho, ele forneceu informações valiosas sobre as complexidades dos movimentos fascistas em todo o mundo. Sua dedicação à precisão e sua atenção aos detalhes fizeram dele uma das maiores autoridades no assunto. Não há melhor guia do que Stanley G. Payne para compreender profundamente o fascismo.

Publicado em 1980, O que é Fascismo: Ideologia e contexto é uma obra altamente conceituada que oferece um exame minucioso do fascismo, e com maturidade acadêmico-científica. O livro utiliza análise comparativa para explicar a natureza do fascismo e suas diversas formas em diferentes contextos históricos. Payne demonstra, por exemplo, que a mais bem estruturada obra até então com definição sobre o fascismo apresentava uma formulação simplista que, fora três negações, listava três características basicamente do Nacional-Socialismo Alemão. Sendo assim, essa definição podia até ser adequada para definir o nazismo, mas não era adequada para definir o fascismo de forma genérica.

O autor argumenta que, embora seja frequentemente associado ao autoritarismo e ao totalitarismo, o fascismo é uma ideologia versátil e adaptável de difícil classificação. Ele adverte contra a simplificação excessiva do fenômeno, ao ser reduzido a um único fator definidor, como um líder carismático ou uma mobilização de massas. Por meio de estudos de caso da Europa entre guerras, ele ilustra como os movimentos fascistas utilizaram uma variedade de elementos ideológicos, incluindo o nacionalismo, o militarismo, o racismo e o anticomunismo para mobilizar apoio e consolidar o poder.

A análise comparativa de Payne permite uma melhor compreensão dos fatores sociais e culturais que contribuíram para o crescimento do fascismo em vários países. Ao considerar elementos como a instabilidade econômica, a convulsão social e o desencanto cultural, Payne enfatiza a intrincada relação entre as circunstâncias e as ações políticas que levaram ao surgimento de movimentos fascistas. Sua abordagem comparativa proporciona uma compreensão profunda da dinâmica sociocultural que facilitou a ascensão do fascismo em diferentes contextos nacionais.

A abordagem científica e rigorosa de Payne sobre o tema torna esse livro uma leitura essencial para quem procura conhecer as complexidades da ideologia fascista

O estudo de Payne sobre o fascismo é significativo porque desafia caracterizações simplistas e oferece uma compreensão múltipla da sua dinâmica sócio-política. Payne decompõe as narrativas convencionais em torno do fascismo, dissecando cuidadosamente: (i) as origens do fascismo e (ii) como ele evoluiu de um movimento marginal para uma força política poderosa.

O leitor da obra encontra no livro os elementos necessários para entender de fato o fascismo e olhar de fora a discussão pública rasa que utiliza o termo como um palavrão destinado aos adversários ideológicos. Aliás, usar fascismo como um epíteto pejorativo é uma tática rastaquera, que se origina na antiga União Soviética e se espraia no pós-guerra. Em 1923, logo após o fracasso do Partido Comunista Alemão na sua tentativa de revolução, o slogan deste partido passou a ser “social-fascismo é socialismo em palavras, fascismo em ações”. Essa teoria do social-fascismo derivou da doutrina comunista, da sua necessidade de apontar inimigos e não da existência de alguma ligação entre fascistas e socialdemocratas.

PeterTang relata que, em 1936,“vinte e um dos membros mais notáveis do Partido Comunista Russo foram acusados de trotskismo e de que o trotskismo na realidade significava fascismo, espionagem, sabotagem e a restauração do capitalismo; destes vinte e um, dezoito foram condenados e executados”. Isso explica porque esses atores ganham pontos quando o termo é utilizado como um palavrão contra adversários.

Faço um destaque para a demonstração de Payne de que não faz sentido apontar qualquer experiência política que possa ser denominada adequadamente de fascista fora aquelas da Europa surgidas no entre guerras. Ele dedica um capítulo inteiro para debater essa questão. As experiências que se aproximaram de ser de fato fascistas (mas sem o serem) são Japão, China, África do Sul e algumas experiências na América Latina. Sobre nosso continente, ele afirma: “Embora vários pequenos grupos fascistas miméticos na América Latina, como o Partido Fascista Argentino (fundado em 1938), fossem totalmente insignificantes, houve alguns movimentos correspondentes, no todo ou em parte, aos partidos fascistas europeus que merecem uma breve consideração. A maior delas foi a Ação Integralista Brasileira (AIB) de Plínio Salgado, fundada em 1932 e inspirada em considerável medida pelo Fascismo italiano. Tentou misturar um tipo italiano de autoritarismo corporativista com a cultura nativa brasileira”.

Indo um pouco mais a fundo, é espantoso o que Payne demonstra sobre Perón e o peronismo, tido como um dos maiores bastiões da esquerda sul-americana. Por isso mesmo, vibra nos olhos de qualquer indivíduo sul-americano que tenha contato com o texto: “Em qualquer consideração de um putativo fascismo na América Latina, de longe a maior atenção tem sido focada no peronismo argentino. Uma discussão sobre ‘fascismo peronista’ refere-se necessariamente aos anos de Perón no poder (1946-55), e não à história subsequente do partido peronista como um grupo de oposição sindical em massa. (...) Perón surgiu como uma figura de liderança no GOU, e assumiu o cargo de presidente eleito da República em 1946. A singularidade do peronismo é que seu principal apoio resultou da organização em massa dos trabalhadores argentinos fomentada por seu governo. O regime peronista de 1946-55 foi um governo pessoal de autoritarismo limitado que tolerava um considerável grau de pluralismo. Seus pilares gêmeos eram o nacionalismo e a reforma social, incentivando o desenvolvimento industrial, por um lado, e a redistribuição de renda, por outro, com o objetivo final de tornar a Argentina a potência dominante na América do Sul. Perón tinha sido adido militar na Itália Fascista e mais tarde admitiu ter sido influenciado pelo Fascismo (...) A ideologia do regime foi denominada justicialismo, e tentou uma síntese dos quatro princípios idealismo, materialismo, individualismo e coletivismo. Perón definiu o fascismo europeu como uma combinação exagerada de idealismo e coletivismo que excluía o individualismo e um materialismo salutar (...) Em determinado momento, ele declarou: ‘Mussolini foi o maior homem de nosso século, mas cometeu alguns erros desastrosos. Eu, que tenho a vantagem de seu precedente antes de mim, seguirei seus passos, mas também evitarei seus erros’”.

A maioria dos analistas do caso peronista concluiu que o peronismo no poder tinha, de fato, a maioria das características que imputam ao fascismo, embora sua base sindical-militar o tornasse um exemplo incomum. O regime foi, é claro, como quase todos os novos sistemas latino-americanos, eclético; um dos conselheiros, redatores de discursos e teóricos sindicais de Perón foi José Figuerola, um espanhol que anteriormente serviu como conselheiro trabalhista do ditador espanhol Primo de Rivera no final dos anos 1920.

Como conciliar as visões de mundo da esquerda brasileira contemporânea, que idolatra Perón e o peronismo e que acusa qualquer adversário ideológico de fascista ao mínimo sinal de crítica? Quando se compara artigos e livros de autores nacionais que se arvoram à condição de explicadores do “fascismo brasileiro” ou que pretendem ensinar como conversar com um fascista ou como derrotar um fascista com a obra científica de Payne, é fácil compreender o que é uma real explicação e o que é um panfleto ideológico disfarçado de obra acadêmico-literária.

O que é Fascismo: Ideologia e contexto é um estudo perspicaz, que enfatiza o exercício crítico da análise contextual ao examinar a ascensão do fascismo. O livro de Payne é não apenas interessante, não apenas instigante, nem mesmo apenas importante: é necessário. A abordagem científica e rigorosa de Payne sobre o tema torna esse livro uma leitura essencial para quem procura conhecer as complexidades da ideologia fascista. Nele, os leitores podem obter uma compreensão abrangente do fascismo e do seu profundo impacto na sociedade. Com ele, o fascismo não passará sem ser entendido e não continuará sendo um palavrão vazio de sentido.

Marcos Pena Jr. é economista, filósofo e escritor. Tradutor e autor da introdução de “O que é Fascismo: Ideologia e contexto” (LVM, 2024).

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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