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Dando uma trégua momentânea ao tema política, nos deparamos com uma notícia preocupante para o mercado de capitais, no contexto brasileiro. Faço alusão ao pedido de demissão da presidência da companhia Americanas S.A, apresentado por Sérgio Rial, dez dias após assumir o cargo, em função da identificação de inconsistências em lançamentos contábeis, traduzidas em um rombo de R$ 20 bilhões nas demonstrações contábeis da companhia.
Um questionamento natural refere-se à atuação de elementos organizacionais e instâncias decisórias da empresa, como o Conselho de Administração, o Comitê de Auditoria, as Auditorias Interna e Independente, a área de Riscos e Controles Internos e a Diretoria. Será que ao longo dos últimos anos esses atores não acompanharam o comportamento das principais contas contábeis e do nível de endividamento da companhia, assim como os lançamentos contábeis correlatos, especialmente em relação às contas “Fornecedores” e “Financiamentos Bancários”, tão importantes no segmento varejista? Não foram realizados monitoramentos e questionamentos quanto aos riscos supostamente gerenciados? Creio que a resposta para essas perguntas seria não.
É importante mencionar que o aspecto que distingue a fraude do erro reside no fato de ser intencional ou não a ação que ocasionará a distorção na informação contábil produzida aos diversos usuários.
Foi informado pela companhia que, após prováveis ajustes necessários, capitaneados pelo comitê independente instaurado para avaliar o problema, certamente ocorrerá a republicação de balanços. Isso é péssimo para a imagem da empresa.
Não quero aqui me ater somente a aspectos contábeis, mesmo porque a empresa não conseguiu, até agora, identificar o que realmente aconteceu. A verdade é que este assunto nos dá a oportunidade da abordagem sobre procedimentos e comportamentos considerados elementares para a boa governança das empresas em geral, sendo importantes para a diminuição das chances da materialização de distorções, provenientes de fraude ou erro, nas informações contábeis que serão divulgadas.
É importante mencionar que o aspecto que distingue a fraude do erro reside no fato de ser intencional ou não a ação que ocasionará a distorção na informação contábil produzida aos diversos usuários. Ressalte-se que, até o momento, não foi possível afirmar, cabalmente, se as inconsistências em lançamentos contábeis foram provenientes de fraude ou erro, ou seja, se possuem como fonte atos intencionais ou não intencionais.
Entretanto, possuindo a distorção como origem uma fraude, ou até mesmo um ato não intencional, é possível afirmar que, provavelmente, falharam a supervisão do processo de geração da informação contábil, assim como o monitoramento dos controles internos correlatos.
No que se refere a possíveis pressões para a produção de informação contábil incorreta, pode-se imaginar, ainda, outros aspectos que possam ter contribuído – mês a mês ou ano a ano – para a situação que hoje se descortinou: estabilidade financeira ou lucratividade ameaçada pela conjuntura econômica ou do mercado, impossibilitando a manutenção da competitividade; pressão pelo cumprimento de expectativas e de outras exigências criadas pela própria diretoria ou outros órgãos de governança da companhia; e pressão excessiva sobre a diretoria da companhia, em relação ao cumprimento de metas financeiras.
É factível mencionar, ainda, que possa ter havido omissão da diretoria em remediar, tempestivamente, as deficiências nos controles internos da empresa das quais possa ter tomado conhecimento. Outro ponto refere-se à manutenção da escrituração de transações e ajustes de maneira inadequada, o que provavelmente afetou consideravelmente a evidenciação da situação patrimonial e do resultado da companhia.
Com poucas informações disponíveis, não é, e talvez não seja possível afirmar em que momento o trabalho da auditoria – seja interna ou externa – falhou. Contudo, é fato que a auditoria possui papel de grande relevância nesse contexto, uma vez que quando do desenvolvimento dos seus trabalhos, a detecção de ocorrências dessa natureza e materialidade (R$ 20 bilhões) é sim uma expectativa dos usuários das informações constantes das demonstrações contábeis. Nesse sentido, as auditorias devem ser planejadas com o devido ceticismo, de forma que possam garantir, de maneira razoável, que situações dessa magnitude possam ser identificadas.
Logicamente essas são considerações iniciais, que carecem de verificação mais profunda de outras questões, até mesmo envolvendo a cultura de controle da empresa, especificamente como a alta administração enxerga as questões relacionadas à comunicação e aplicação de valores e padrões éticos no âmbito dos processos de trabalho. Tudo isso com o objetivo permanente de fortalecer os processos de governança, controles internos e gestão de riscos da companhia, diminuindo, assim, a chance da materialização de novos eventos similares, no futuro.
Uma coisa é realidade, parafraseando os valores da companhia Americanas S.A, divulgados em sua página na internet: devemos ser obcecados por resultados, coerentemente sempre com uma visão de respeito aos princípios e à boa técnica contábil. Governança corporativa e controles internos não são conceitos abstratos. Em algum momento a fatura chega.
Carlos Alexandre Nascimento Wanderley é auditor, mestre em Ciências Contábeis e autor de livros e artigos na área de auditoria e controle governamental.