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Naquela quinta-feira, no começo da manhã, dirigia-me ao salão nobre da faculdade de direito do Largo de São Francisco, uma hora antes da apresentação que um amigo, formado comigo e conhecido filósofo do direito da casa, faria numa mesa de debates sobre as relações entre a cultura e o direito.
Resolvi, antes, porém, passar num famoso sebo situado no caminho, a fim de buscar um livro encomendado. Tive uma enorme surpresa, porque, no intervalo de alguns anos, aquele pequeno recinto de preciosidades jurídicas havia passado por uma revolução reclassificatória. Os livros de direito estavam agora acompanhados por outras seções, desde as mais tradicionais, como literatura, arte, filosofia, até as mais pitorescas, representadas por vastas estantes de obras pós-modernas de teoria cultural, classe e gênero, raça e cultura.
Alguns pensadores, que pretendem incrustar na vida o jogo especulativo e os sonhos da ficção, também não contribuem determinantemente para turvar nosso entendimento sobre a realidade das coisas?
Entretanto, chamou-me mais atenção uma seção intitulada “homem e sexualidade”, que me trouxe alguma esperança, mas não tinha nada a ver com antropologia filosófica e sim com puro experimentalismo estruturalista, a julgar pelos títulos das obras ali expostas: os principais livros de Deleuze, Foucault, Barthes e outros bem menos conhecidos, mas, nem por isso, menos chocantes, como A Revolução Feminista do Eu, O Bicha Material, O Transfeminismo Pós-Moderno e O Ídolo Lésbico. Como nada daquilo me abriu o apetite intelectual, fui embora sem comprar nada, algo que raramente se dá comigo em livrarias, e, em estado de choque intelectual, acabei esquecendo até de solicitar ao atendente o livro encomendado.
Saí de lá com pressa rumo à faculdade para ouvir meu amigo, cuja brilhante inteligência era capaz de devorar todas as obras platônicas e aristotélicas em algumas semanas, mas que, com o tempo, resolveu se esquecer da sabedoria dali haurida e dar corpo teórico para as teorias pós-modernas do direito. Em suma, ele tinha uma parcela de responsabilidade sobre o atual estado da cultura e, daqui a alguns anos, terá sobre aquilo que entenderemos sobre o direito. Para o bem ou para o mal. Afinal, como dizia minha avó, as ideias têm consequências e, as más ideias, as piores.
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Sua apresentação começou como já previa: um discurso estruturalista demolindo o existente e substituindo-o por uma irrealidade verbosa e oca. Ele disse que, segundo Foucault, “o homem é apenas um rosto de areia na beira do mar, passada a primeira onda, nada restará”. É o que o filósofo francês afirma no fim de As Palavras e as Coisas. E o que isso significa?
O homem, como sujeito do conhecimento e seu objeto, como criador de conhecimento, existe há pouco tempo e pouco tempo resta para ele. Foucault entende que a morte do sujeito já está em andamento, afinal, se ele não existiu sempre, nada garante sua permanência. Em suma, o homem passa por um processo de inexistência, porém, pelo menos, essa “inexistência” está aí, povoando nossa realidade com seu “versátil vazio”.
Depois, meu estimado amigo fez outros passeios filosóficos. Afirmou que Barthes só conferia substância real ao estilo, consistente na inflexão que cada vida é capaz de imprimir no rio de palavras em que o ser aparece e desaparece. E ainda citou Derrida, para quem somente os textos ou discursos gozam de vida, porque eles pertencem a um universo de formas autossuficientes que se remetem e modificam mutuamente, sem qualquer necessidade de interação com experiência humana.
Ato contínuo, meu amigo deu o passo adiante que faltava. Para ele, a realidade já não mais existia. Em seu lugar, entrou a realidade virtual, criada pelos discursos públicos e midiáticos que, a partir dos fatos, interpreta-os e os rotula sob o nome de “informação”.
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As ocorrências do mundo real não são mais objetivas e nascem corroídas em sua verdade e consistência ontológicas, de maneira que não podemos mais ter qualquer perspectiva crítica sobre o mundo que nos rodeia. A única “realidade” de nossa era é a dos simulacros ou aparências e o melhor exemplo disso é a “verdade” da ficção midiática atestada por factcheckers ou pelas “agências de combate à mentira” (ministério da verdade reloaded) já instalados em muitas instituições públicas, como a tal Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE.
Sem dúvida, vivemos numa época de grandes representações que dificultam nossa compreensão do mundo real. Os políticos e celebridades pegos em flagrante costumam ser bem férteis e imaginativos na escolha do rol de desculpas de plantão. É um bom exemplo. Contudo, não parece evidente que, para muito além desses políticos e celebridades, alguns pensadores, que pretendem incrustar na vida o jogo especulativo e os sonhos da ficção, também não contribuem determinantemente para turvar nosso entendimento sobre a realidade das coisas?
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Ao final da apresentação e, talvez, involuntariamente, meu amigo afirmou que “o escândalo, hoje, não está em atentar contra os valores morais e sim contra o princípio da realidade”. Tomei isso como uma autocrítica de quem, há algum tempo, vem empenhando toda sua argumentação dialética e uma inteligência privilegiada contra o homem, como se o ser humano não pudesse mais discernir entre a verdade e a mentira, a história e a ficção, a ponto dele ter se transformado, nesse labirinto cognitivo, numa espécie de fantasma autômato, privado de conhecimento e de liberdade e condenado à extinção sem sequer ter vivido com algum sentido transcendente.
Deixei, movido por outros compromissos, o recinto da apresentação. Gostaria muito de tê-lo cumprimentado. Ao menos em razão da amizade que ainda nos une, mas, sobretudo, para lembrar-lhe os tempos idos de nossa juventude acadêmica, quando a realidade nos exaltava e ele ainda acreditava que nós existíamos, sobretudo para tomar cerveja e jogar truco antes, durante ou depois das aulas.
Ao cabo, nem passei no sebo para resgatar o livro esquecido, porque me consolei com a ideia de que, talvez, ele já não mais existisse para mim, mas para outro dono que o tivesse arrematado depois de meu lapso matinal.
André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de direito, professor de filosofia da Academia Atlântico e de filosofia do direito do Instituto Ives Gandra, pesquisador em filosofia da educação pela Unicamp e membro da Academia Campinense de Letras.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos