Tudo começou com alguns toques no teclado do celular em uma sala de estar em Montreal. Gilbert Mirambeau Jr., cineasta e roteirista haitiano, postou uma foto de si mesmo no Twitter, em 14 de agosto, com os olhos vendados, segurando um pedaço de papelão com uma pergunta simples, escrita na linguagem crioula de seu país: “Kot Kob Petwo Karibe a???” (”Cadê o dinheiro da Petrocaribe???”).
Ele se referia aos fundos de US$ 2 bilhões em empréstimos a juros baixos oferecidos pela Petrocaribe, uma aliança de países caribenhos para compra de petróleo liderada pela Venezuela, criada em 2008, para ajudar a economia haitiana. O órgão se tornou um recurso emergencial imprescindível em 2010, quando um terremoto arrasou o Haiti.
Poucos dias depois do tuíte de Mirambeau, o famoso rapper haitiano K-Lib tuitou uma foto sua no mesmo estilo, usando a hashtag #PetroCaribeChallenge; no dia 18, um grupo informal de jovens haitianos decidiu fazer da promoção da hashtag sua primeira ação pública, no Twitter e no Facebook. O movimento continuou a ganhar impulso e a campanha acabou chegando às ruas da ilha.
Em 17 de outubro, uma multidão enorme, com gente de todos os setores da sociedade, foi às ruas pacificamente, com faixas e camisetas, para exigir uma resposta à pergunta tuitada por Mirambeau – que, aliás, continua nos trends locais.
Doadores internacionais prometeram mais de US$ 10 bilhões em assistência, mas menos de 1% da ajuda emergencial gasta em seus nomes foi diretamente para os haitianos
O resultado é um desafio impressionante ao legado de corrupção e desgoverno, sentimento que os haitianos compartilham e que há décadas não conseguem combater de forma eficiente. A grande questão para esse país pobre e minúsculo é: será que o movimento atual tem condições de forçar o cenário político atual rumo a uma democracia funcional ou apontará o governo para um novo ciclo de repressão?
Em 18 de novembro, dia em que o Haiti comemora a vitória sobre as tropas de Napoleão, há 215 anos, os cidadãos voltaram às ruas, mostrando que a ação não vai se dissipar. Porém, para garantir que esse empuxo resulte em mudanças significativas, é preciso que todas as partes interessadas – o governo e o setor comercial haitianos, a elite e a população carente, mais a comunidade internacional – se unam para combater a corrupção, estado de coisas transacional que vai muito além das fronteiras do país.
Após o terremoto de 2010, doadores internacionais prometeram mais de US$ 10 bilhões em assistência, mas menos de 1% da ajuda emergencial gasta em seus nomes foi diretamente para os haitianos; o governo legítimo, o setor privado e a sociedade civil foram preteridos em favor de empresas assistenciais pró-lucro nos Estados Unidos e outros especialistas estrangeiros. É uma política que evoca a ditadura dinástica de Duvalier, de meados do século 20, quando “Papa Doc” e “Baby Doc” se tornaram símbolos internacionais de cleptocracia. Hoje é uma política que só serve para enfraquecer o Estado e perpetuar a corrupção, mas em escala internacional.
Apesar de, a princípio, parecer um contrassenso, a Petrocaribe coloca os fundos diretamente nos cofres governamentais, permitindo assim que o governo preencha as imensas lacunas deixadas pelo terremoto. Só que, em vez de ajudar a desenvolver um sistema de ajuda mais eficiente, a injeção acabou gerando um sistema de clientelismo altamente eficiente. Nove anos após o terremoto, pouco há para mostrar em relação aos bilhões recebidos.
Leia também: Onde fica o Haiti (artigo de Alberto Dines, publicado em 15 de janeiro de 2010)
Leia também: O Haiti também é aqui (artigo de Maria Cristina Figueiredo Silva, publicado em 3 de novembro de 2014)
No ano passado, uma comissão do Senado haitiano publicou um relatório investigativo de 650 páginas sobre o programa da Petrocaribe, implicando grande parte da classe política nacional, responsável por inflar os contratos públicos, colocar dinheiro em empresas-fantasma e realizar todo tipo de improbidade financeira. E agora, com o escândalo de US$ 2 bilhões parados nas mãos dessas mesmas autoridades, e com o Judiciário fraco demais para agir, os haitianos que vivem na ilha e no exterior resolveram agir por conta própria.
O movimento em si é improvável, pois nem liderança definida tem. Entretanto, pelo fato de mais da metade da população haitiana estar abaixo dos 24 anos e a ação se concentrar nas redes sociais, a diáspora, que só faz crescer, está se tornando cada vez mais ativa em relação ao futuro político da nação.
Infelizmente, conforme as mudanças começam a parecer possíveis, as tensões vão aumentando. Em julho passado, houve três dias de tumultos depois do anúncio do aumento no preço dos combustíveis, revelando o quanto o país está próximo de uma explosão social. A seguir, veio o #PetroCaribeChallenge de Mirambeau, mudando o paradigma para uma campanha não violenta – mas, apesar disso, gangues envolvidas com o partido da situação, ao lado de policiais corruptos, mataram pelo menos 60 pessoas dias antes do protesto de 18 de novembro.
No Haiti, volta e meia a estabilidade é citada como justificativa para não desafiar o desgoverno, mas os eventos deste ano revelaram que não mexer na situação só vai gerar instabilidade.
Um problema é que a história recente das Nações Unidas no Haiti inclui anos de recusa em assumir a responsabilidade pela introdução de uma epidemia fatal de cólera
Os protestos não violentos que pressionam as autoridades a fazer uma “limpa” e apontar os culpados e corruptos poderiam parecer uma solução óbvia para esse impasse, mas a história recente aponta para pouca esperança de mudanças significativas. O governo pediu paciência e prometeu uma investigação, mas os haitianos já ouviram promessas vazias muitas vezes. Depois da queda da ditadura de Duvalier, nenhum político foi condenado por crimes financeiros.
Em fevereiro de 2017, quando Jovenel Moise se tornou presidente, ele prometeu acabar com a corrupção; acontece que seu mentor político e antecessor, Michel Martelly, foi quem dirigiu a maior parte dos gastos da Petrocaribe. Agora o líder também está diretamente implicado, e a repressão de seu governo ganhou novo fôlego.
Só que coibir apenas torna a oposição ainda mais determinada, com figuras políticas e corporativas de destaque sentindo que o momento é de oportunidade – de exigir justiça ou proteger os próprios interesses? Só o tempo dirá. De qualquer forma, será muito difícil evitar que uma investigação não seja atropelada pelo jogo político da capital nacional.
Como garantir, portanto, que esse movimento não seja corrompido pela ambição ou pelas jogadas de poder? A resposta pode estar na Guatemala, onde uma Comissão Internacional contra a Impunidade, com apoio da ONU, está investigando o papel desempenhado pela elite daquele país em seu controle, moralmente repugnante, da economia e do governo. Atualmente, o comitê está sob ameaça, mas sua capacidade de sobreviver mais de dez anos pelo menos abriu uma porta para o longo processo de mudanças.
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Um problema é que a história recente das Nações Unidas no Haiti inclui anos de recusa em assumir a responsabilidade pela introdução de uma epidemia fatal de cólera, por meio dos membros de sua força de paz. Uma nova missão chegou em 2016, mas parece incapaz de combater a impunidade: depois de ter dado as boas-vindas a um juiz investigativo no caso Petrocaribe este ano, o governo do Haiti protestou e a organização obedientemente substituiu o diretor da missão.
Outra barreira é a dificuldade de aceitação de qualquer papel internacional fundamental na reforma, considerando-se o longo histórico de intervenção externa no país. Apesar disso, os princípios universais que guiam a comissão na Guatemala – independência investigativa, experiência e autonomia legal – podem ser um guia útil para o movimento anticorrupção do Haiti. É inegável também a necessidade de auditores forenses experientes, promotores corajosos e profissionais autossuficientes em termos legais com liberdade para seguir a rota do dinheiro, aonde quer que ela leve.
Para a comunidade internacional, cujas intervenções e prioridades equivocadas há tempos ajudaram a consolidar uma situação insustentável, insistir na defesa da transparência desta vez poderia ajudar a restabelecer parte da confiança do público haitiano e a manter aberto o caminho para uma mudança sistêmica.
Só depende das partes interessadas optar por essa alternativa. “Eu não esperava nada disso”, me confessou Mirambeau, cujo tuíte deu início a tudo. Ninguém esperava, mas agora essa possibilidade de mudança trouxe aos haitianos espalhados pelo mundo um tiquinho de esperança.
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