Sou um turco de trinta anos, e durante toda a minha vida adulta o ritual das eleições foi um só: uma campanha disputadíssima, o dia da votação, o pessoal indo às urnas, as cédulas sendo contadas e Recep Tayyip Erdogan vencendo.
Então ele aparece na sacada da sede de seu partido, o da Justiça e do Desenvolvimento, aqui em Ancara, e faz o discurso da vitória para uma multidão ensandecida. Se você está ali no meio, tem a sensação de ter se tornado um pouquinho mais importante no mundo; se não, se sente como se fosse um tanto menos relevante. Essa sequência de eventos se repete há 17 anos.
Em 31 de março, a Turquia votou para eleger os prefeitos de suas 81 províncias e municípios. O partido do presidente, conhecido como AKP, se aliou ao ultranacionalista Movimento Nacional; a principal oposição, secularista, era o Partido Republicano do Povo, ou CHP, que contestava em parceria com o Bom Partido (Good Party), facção que se separou dos nacionalistas em 2018.
O Partido Democrático do Povo, ou HD, dos nacionalistas de esquerda curdos, cooperou com a aliança da oposição em diversas das cidades maiores, ao mesmo tempo que disputou contra o AKP nas províncias do sudeste, de maioria curda. Foi uma briga de foice: Erdogan chegou a fazer campanha pessoalmente, todo dia, e acusou repetidamente os concorrentes de colaborar com os terroristas. A maioria dos candidatos da oposição simplesmente se apresentava como uma opção a Erdogan.
Erdogan chegou a fazer campanha pessoalmente, todo dia, e acusou repetidamente os concorrentes de colaborar com os terroristas
Na noite de 31 de março, Mansur Yavas, candidato do CHP a prefeito de Ancara, estava confortavelmente à frente do concorrente do AKP, que controla a cidade há 25 anos. Apesar do desenrolar dos acontecimentos na capital, porém, toda a atenção estava voltada para Istambul.
Ekrem Imamoglu, o candidato jovem e energético do CHP, estava conquistando votos com rapidez e alcançando o escolhido de Erdogan, Binali Yildirim, ex-primeiro-ministro e ex-presidente do Parlamento.
Os celulares explodiam com as mensagens do WhatsApp: tinha foto de Yildirim escrevendo o discurso da vitória, tinha Imamoglu indo a público e insistindo em dizer que estava na frente, segundo os cálculos de sua campanha. O pessoal começou a ficar com raiva porque as autoridades pararam de atualizar os resultados quando Imamoglu alcançou Yildirim no número de votos.
Então uma novidade: Erdogan saiu para a sacada, mas alguma coisa estava errada. Conforme ele se adiantou para melhor ser visto pela multidão, começou a cantar a música que ecoava pela noite: “Essas rosas são para vocês / Esta alma é nossa / Não fiquem tristes, não chorem / Sorriam sempre”.
Seu discurso foi curto e vago. Disse que estava honrado de ter o voto popular e que seu partido tinha se saído bem em várias províncias, embora não dissesse quais. “Aqueles que fizeram falsas alegações são bem-vindos; vamos ver como governam.” Foi o mais próximo que conseguiu chegar de admitir a calamidade: seu AKP tinha perdido em Ancara, Istambul e outras cidades grandes.
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Para compreender o significado disso, ajuda conhecer a narrativa dominante na política turca atual, que é mais ou menos esta: ao longo de toda a sua história republicana, a Turquia foi governada por uma elite secular caracterizada por sua fidelidade inabalável aos imperialistas ocidentais.
Um grupo de conservadores audaciosos insistia em desafiar o sistema até que, em 1994, um Erdogan jovem e seu amigo (já dispensado) ganharam as prefeituras de Istambul e Ancara, respectivamente. Em meio às crises econômicas, aos governos fracos de coalizão e à comoção civil dos anos 1990, Erdogan e seus camaradas eram ilhas de boa governança; serviram essas grandes cidades com distinção e ganharam fama de incorruptíveis.
Em 2002, o movimento deles, já sob a sigla AKP, foi eleito para o cargo federal. Sob a liderança firme de Erdogan, expandiram a economia, deram jeito na burocracia e conquistaram metade dos votos populares. A Turquia estava bombando; o mundo falava do “modelo turco” de democracia de maioria muçulmana. Em meados da década de 2010, Erdogan tinha debilitado os militares propensos a golpes e isolado as elites corruptas de outrora.
Os partidos de oposição, ciumentos, uniram-se a agentes obscuros de fora para tramar a queda do grandioso renascimento turco. Alguns amigos e aliados de Erdogan o traíram, mas “o povo”, não. Quando a economia começou a desacelerar, quando o sistema judiciário passou a atravancar, ele pediu ao povo que se sacrificasse pela causa do que chamava a “Nova Turquia”, uma nação libertada da dominação ocidental, livre para alçar novos voos.
Só que o mito da Nova Turquia é paradoxal; surgiu da realização de ações efetivas nos anos 90, como o tapar de buracos. Para manter o mito, porém, Erdogan às vezes pedia aos eleitores que ignorassem esses gestos práticos e simplesmente tivessem fé na “causa”.
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Em 31 de março, surgiu uma brecha enorme nessa muralha de fé, especialmente em Istambul, onde o amor de Erdogan pelo povo se transformou em serviço governamental pela primeira vez, talvez devido à combinação dos problemas econômicos cada vez mais graves e uma oposição cada vez mais competente.
A vitória foi apertada em Istambul, e o Supremo Conselho Eleitoral pediu três dias para verificar as coisas. Ao que parece, porém, Imamoglu, o candidato jovem e teimosamente positivo do CHP, ficará com o cargo que deu início ao “grande caso de amor” de Erdogan com o povo, há 25 anos.
Se isso não acontecer e o AKP mantiver o controle sobre a cidade, a população vai saber que Imamoglu se destacou, apesar da desigualdade brutal – o quase monopólio do governo na TV, o uso abundante de recursos públicos, as ameaças de processos –, e provavelmente ainda venceu.
Isso pode sinalizar os limites da estratégia política de Erdogan. Já nestas eleições, os políticos de oposição zombaram do presidente por chamar o eleitor comum de “terrorista”. Ele nega veementemente e chegou a processar um deles. Em vídeo recente, já viral, uma senhora pergunta: “Por que o homem que governa a Turquia deveria fazer distinção entre as pessoas? Aqueles partidos [de oposição] são sempre maus e só você [Erdogan] é sempre bom?”
O fato é que, quando a retórica populista parte de um rosto novo e é dirigida a uma elite arraigada, ela soa plausível; quando já superou essa fidalguia e alcançou seus limites demográficos, soa ridícula.
E é aí que está o problema da política de Erdogan: ele não é honesto consigo mesmo. Quer dominar o espaço político e transformar o país, mas não está exatamente disposto a se engajar no nível de repressão que isso exige. Demoniza a oposição como colaboradora do terrorismo, mas permite que participe das eleições.
Seu estilo político exige que ele aumente a intensidade ou sucumba sob o peso de suas próprias contradições.
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