Ao analisar o caso do vazamento de mensagens trocadas entre o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, até o fim do ano passado juiz da 13.ª Vara Criminal Federal em Curitiba, e Deltan Dallagnol, procurador da República e coordenador da força-tarefa da Lava Jato, além de mensagens de grupo de procuradores da República correspondentes ao período de 2015 a 2018 e enviadas pelo aplicativo Telegram, a primeira coisa a ressaltar é o fato de elas terem sido obtidas ilicitamente, mediante prática do crime de invasão de dispositivo informático por parte de hackers (artigo 154-A do Código Penal).
Com efeito, o agente invadiu dispositivo informático alheio, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, com o fim de obter dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo. Considerando o caráter sigiloso da comunicação entre autoridades públicas, a pena cominada é de reclusão de 6 meses a 2 anos (§ 3.º do artigo 154-A), aumentada de um a dois terços quando as informações são divulgadas a terceiros (§ 4.º do artigo 154-A). O crime é de ação penal pública incondicionada, por ter sido praticado contra autoridades da administração pública – no caso, o Judiciário e o Ministério Público (artigo 154-B).
Tais mensagens só poderiam ser obtidas licitamente por força de decisão judicial em inquérito ou processo criminal, tendo em vista a proteção da intimidade e da inviolabilidade das comunicações, em consonância com a interpretação sistemática do disposto em vários diplomas legais, a começar pela Constituição Federal, em seu artigo 5.º, X e XII, além das leis 9.296/96 (das interceptações telefônicas) e 12.965/2014 (Marco Civil da Internet, artigo 7.º, II e III) (cf. RHC 89.981/MG, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, da Quinta Turma, julgado em 5 de dezembro de 2017 e publicado no DJe em 13 de dezembro de 2017.
O conteúdo das conversas divulgadas não demonstra quebra de imparcialidade
O artigo 5.º, LVI, da Constituição dispõe que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Por sua vez, o caput do artigo 157 do Código de Processo Penal estabelece que se consideram provas ilícitas “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. São igualmente inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não houver nexo causal entre umas e outras ou puderem ser obtidas por fonte independente, a qual permite conduzir ao fato objeto da prova, como prevê o artigo 157, §§ 1.º e 2.º.
Destarte, tanto Moro quanto Dallagnol não poderão sofrer qualquer tipo de acusação ou responsabilização nas esferas administrativa ou judicial com base em conversas obtidas de forma ilícita.
Feito esse esclarecimento quanto ao modo de obtenção das mensagens, é preciso também dizer que o conteúdo das conversas divulgadas não demonstra quebra de imparcialidade, dizendo respeito apenas a questão processuais e procedimentais quanto ao trâmite de processos.
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A divulgação das mensagens pelo site The Intercept foi objeto de reportagem na edição impressa do jornal Folha de S.Paulo de 10 de junho. De seu conteúdo, não é possível comprovar qualquer ilegalidade na comunicação entre juiz e procurador da República, nem daí inferir quebra de imparcialidade. Não se verifica antecipação do juízo de mérito de processos pelo juiz. Percebe-se que juiz e procurador da República conversam sobre ordem, tramitação e admissibilidade de ações penais, matérias procedimentais e processuais. Não são tratadas questões relativas à culpa de acusados, se são inocentes ou culpados.
Cabe assinalar, outrossim, que o juiz presidia vara especializada para julgar processos por lavagem de dinheiro, crimes financeiros e organizações criminosas. Ora, as varas especializadas foram criadas exatamente para dar celeridade e eficiência ao trâmite de inquéritos e ações penais, conforme a Resolução 517/2006 do Conselho de Justiça Federal, considerada constitucional pelo STF no julgamento, em plenário, do HC 88.660, e em sintonia com recomendação internacional do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi). À especialização da vara, seguiu-se a especialização da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, com o mesmo objetivo.
Logo, é normal a comunicação entre MPF e juiz quanto ao fluxo e ao ritmo dos processos, dado que força-tarefa e vara foram instituídas com a finalidade de conferir maior eficiência na tramitação dos referidos processos.
É normal a comunicação entre MPF e juiz quanto ao fluxo e ao ritmo dos processos
Não há qualquer vedação legal à comunicação entre juiz e Ministério Público, e tampouco entre advogado e juiz. Observe-se que questões procedimentais costumam normalmente ser abordadas por advogados e membros do Ministério Público em despachos e audiências com juízes, sendo comuns na prática forense.
Também não se verificam hipóteses legais de impedimento ou de suspeição do magistrado, previstas nos artigos 252 e 254 do Código de Processo Penal. Quanto à possível suspeição por aconselhamento da parte (artigo 254, IV), esta não se aplica ao Ministério Público, mas apenas ao réu ou à vítima.
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No processo penal brasileiro, o MP, órgão de Estado essencial à justiça, não é considerado parte no sentido estrito, pois vela pelo interesse público, como diz o artigo 127 da Constituição. É considerado parte imparcial. Embora seja, em regra, o titular da ação penal, de acordo com o artigo 129, I, da Carta Magna, desempenha o papel de fiscal da lei e de velar pela pretensão punitiva estatal. Embora se incumba da acusação criminal em juízo, como fiscal da lei, pode pedir tanto a condenação quanto a absolvição do acusado. Por outro lado, a defesa sempre é parcial em favor do réu, não possuindo as mesmas atribuições de caráter público conferidas ao MP.
Portanto, até o momento, as notícias vindas a público neste início de semana revelam que Sergio Moro, Deltan Dallagnol e demais procuradores da Lava Jato são vítimas do crime de invasão de dispositivo informático por parte de hackers, previsto pelo artigo 154-A do Código Penal, cuja pena, de 6 meses a 2 anos de reclusão, por se cuidar de comunicação sigilosa entre autoridades (§ 3.º do artigo 154-A), deve ainda ser aumentada de um a dois terços, porque as informações foram divulgadas a terceiros (§ 4.º do artigo 154-A).
Modesto Carvalhosa é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Gauthama Fornaciari de Paula, advogado criminalista, é mestre em Direito pela FGV-SP.