Bolsonaro “estudava” dividir o Ministério da Justiça e Segurança Pública em dois: Ministério da Justiça e Ministério da Segurança Pública. Ou seja, “estudava” tirar a Segurança Pública – o mais visível e mais bem-sucedido setor do governo – das mãos íntegras, competentes, eficientes e eficazes de Sergio Moro. Assim falou, ipsis verbis, o presidente na quinta-feira, dia 23 de janeiro, em briefing à imprensa nacional: “Isso é estudado, estudado com Moro, lógico que o Moro deve ser contra. Estudado com os demais ministros. O Rodrigo Maia [presidente da Câmara] é favorável à criação da Segurança, acredito que a Comissão de Segurança Pública, como trabalhou no passado, também seja favorável. Temos que ver como se comportam esses setores da sociedade para poder melhor decidir”. E foi adiante, o presidente Bolsonaro: “Se for criado [o Ministério da Segurança], daí ele [Moro] fica na Justiça. O que era inicialmente. Tanto é que, quando ele foi convidado, não existia ainda essa modulação de fundir com o Ministério da Segurança”.
Ou Bolsonaro tem memória muito curta, ou está mentindo cinicamente à nação. Ao contrário desta declaração, em post no Twitter de 1.º de novembro de 2018, Bolsonaro escrevera (o destaque é meu): “O juiz federal Sergio Moro aceitou nosso convite para o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Sua agenda anticorrupção, anticrime organizado, bem como o respeito à Constituição e às leis será o nosso norte!” Aliás, esta mesma informação fora dada por Moro na mesmíssima data (o destaque continua sendo meu): “Fui convidado pelo sr. presidente eleito para ser nomeado ministro da Justiça e da Segurança Pública na próxima gestão.”
Fica, ante esta memória, muito estranho o conteúdo do briefing de Bolsonaro à imprensa, ao falar que “quando ele [Moro] foi convidado, não existia ainda essa modulação de fundir com o Ministério da Segurança”. Estaria Bolsonaro subestimando a memória e o discernimento do povo? Estaria pensando, como é comum entre os piores políticos brasileiros – aqui incluídos Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Renan Calheiros e tantos outros – que tudo o que eles dizem, mesmo que evidente mentira, será aceito como verdade inquestionável por grande parte dos cidadãos?
Digo com absoluta segurança: retirar de Moro a segurança pública significaria tirá-lo do governo, já que Moro, homem da mais alta dignidade, não aceitaria passivamente o golpe e a humilhação. Deixaria o governo se essa insanidade do fatiamento do seu ministério tivesse se confirmado.
E mais: se Moro abandonasse o governo – o que fatalmente teria acontecido, caso seu ministério fosse fatiado em dois –, seria o começo do fim do governo Bolsonaro. A credibilidade de Bolsonaro estaria para sempre comprometida. Se Bolsonaro pensa que, ao demitir Moro – mesmo que por via travessa, como através do fatiamento de seu ministério –, estaria se livrando de uma sombra incômoda para o seu ego e para o seu futuro político, está redondamente enganado. Moro, até o presente, só deu manifestações de fidelidade ao presidente, mas não pode, claro, impedir especulações sobre suas “ambições” políticas. O que é triste é ver o presidente parecer cair nesta esparrela armada por parte da imprensa; é perceber o presidente dando crédito a essas naturais especulações, e comportando-se paranoicamente em relação ao mais querido e prestigiado de seus ministros. Se Moro um dia abandonar o governo, restará a Bolsonaro o apoio de Toffoli, de “Botafogo”, de Alcolumbre e similares, bem como daqueles que, com espírito de manada, sonham em transformar o “bolsonarismo” em uma seita política, como são exemplos o lulopetismo, o comunismo e o peronismo.
O contexto atual demanda a consideração de alguns fatos recentes e de alguma forma relacionados ao briefing do presidente. Bolsonaro sancionou (contra a recomendação de Moro!) a aberração do juiz de garantias, um jabuti colocado pelo Congresso, sorrateira e oportunisticamente, no projeto anticrime de Moro. O objetivo final deste jabuti? Ora, aumentar a garantia de impunidade de corruptos, por meio de novos obstáculos ao andamento das investigações, na fase de inquérito e de processo. Se a Justiça brasileira já é lenta, tantos são os recursos protelatórios que o permitem, com este famigerado juiz de garantias terá muitas dificuldades adicionais para mover-se, levando a decisão final às calendas gregas. Esta inovação intempestiva e estapafúrdia não serve à Justiça, mas à corrupção.
Bolsonaro é o presidente que sancionou o Fundo Eleitoral, esta imoralidade que tira do bolso dos contribuintes R$ 2 bilhões de reais para reeleger os piores políticos do Brasil. Disse à nação que sancionava o excrescente fundo para não sofrer impeachment. Uma falácia, já que é prerrogativa do presidente vetar, em parte ou no todo, projetos aprovados pelo Congresso. Uma pessoa minimamente inteligente perguntaria: “Se não é possível vetar, por que raios tem a decisão do Congresso de subir à sanção presidencial? Não seria o caso de uma simples promulgação, como ocorre com emendas constitucionais? Ou teria o gabinete presidencial se transformando em um simples cartório carimbador de decisões do Congresso?” Mais: caso o Congresso sinta-se incomodado com o veto presidencial, tem 30 dias para derrubá-lo. E, se o Congresso não conseguir derrubar um simples veto, como, então, falar na hipótese de impeachment? Esta falácia presidencial do impeachment não é argumento para convencer quem tem mais de dois neurônios na cabeça. Falácia pura, presidente Bolsonaro. Mais respeito para com os seus 58 milhões de eleitores. Agora, como se de nada fosse responsável, Bolsonaro faz uma campanha para que os eleitores não votem em quem usar o Fundo Eleitoral que ele sancionou. Uma campanha falaciosa é a conclusão fatal a que se chega. Aliás, o filho de Jair, Flávio Bolsonaro, já votara a favor do fundo “por engano”, segundo suas próprias palavras. Outra explicação falaciosa, por certo.
Bolsonaro já se incompatibilizara antes com Moro, quando este criticou a decisão monocrática de Dias Toffoli que paralisou todos os inquéritos e processos abertos com base em informações do Coaf, inclusive o de Flávio Bolsonaro, sobre a questão da “rachadinha” na Assembleia do Rio de Janeiro. Moro estava certíssimo, de acordo com a opinião de eminentes juristas, depois corroborada pelo pleno do STF, que derrubou a decisão monocrática de Toffoli.
Os fatos apontados acima provocam especulações (falsas ou verdadeiras, não sei) de entendimentos nada republicanos entre Jair Bolsonaro, Dias Toffoli, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, que inundam a mídia, tanto a tradicional quanto a das redes sociais. O que sei dizer é que tais comportamentos do presidente ensejam, sim, essas especulações. E isso é muito ruim para o governo e para o país.
Moro ficou sabendo dos tais “estudos” para o fatiamento do seu ministério pelo briefing de Jair Bolsonaro à imprensa, no dia 23. Incrível tamanha falta de ética e respeito: o principal afetado pelo fatiamento – o ínclito ministro Sergio Moro – foi informado da intenção de Bolsonaro pela imprensa. Nem sequer fora convidado para a reunião, no dia anterior, de Bolsonaro com os secretários de Segurança estaduais, alguns do PT, na qual se propôs (ainda segundo o presidente) o oportunista fatiamento. Se o prezado leitor não conhecia o significado do termo “fritar”, em política, este fato aqui narrado representa um caso emblemático de fritura. Sim, em alto e bom som: Sergio Moro estava sendo “fritado” em óleo fervente por Jair Bolsonaro naquele dia 23. Mas, no dia seguinte, o presidente, já na Índia, recuava e informava que “a chance [de fatiamento], neste momento, é zero”. Mas como? O fatiamento não estava em “estudo”, com o aval do “Botafogo” e tudo? O que houve de um dia para o outro? Suspenderam-se os “estudos”? A péssima repercussão do briefing fez o pendular presidente voltar atrás? Como fica, agora, a relação pessoal entre o presidente e o ministro Moro, depois da “fritura” através do briefing de 23 de janeiro? Já não bastasse a insegurança jurídica que emana do STF, temos de viver com esta instabilidade de um presidente pendular, que, por sua vez, implica em uma insegurança institucional? Tudo isso é muito ruim para o Brasil.
Diante da “fritura” de Moro, um brasileiro ético – mesmo que tenha apoiado Jair Bolsonaro desde sua campanha eleitoral e reconheça os grandes resultados de seu governo em áreas vitais como economia, agricultura e segurança – não pode ficar calado. Quem cala consente, diz a sabedoria popular, a Vox Populi é a Vox Dei. E eu não posso consentir, ou coonestar tamanha grosseria e sordidez para com uma pessoa fiel, confiável, detentora de exemplar currículo de grandes serviços prestados ao país, como Sergio Moro. Tenho apoiado Bolsonaro desde que ele despontou na carreira eleitoral para presidente da República. Mas jamais ofereci apoio incondicional a quem quer que seja. Todo apoio consciente e honesto há de ser crítico. Apoio incondicional é coisa de seitas políticas, como bem o sabem os petistas e assemelhados de esquerda. Apoio incondicional não é coisa de amigos; é comportamento de áulicos e de cúmplices.
José J. de Espíndola é engenheiro mecânico, mestre em Ciências em Engenharia, doutor pela Universidade de Southampton (Inglaterra), doutor honoris causa pela UFPR e professor titular aposentado da UFSC.