Ao longo dos séculos XIX e XX, o capitalismo propiciou que as sociedades ocidentais lograssem padrões antes inimagináveis de prosperidade, expectativa e qualidade de vida. Dois campos de pensamento opostos disputavam proeminência e se equilibravam. De um lado, as ideias do livre mercado e da livre concorrência. Do outro, a promoção de intervenções do Estado como meio de equilibrar mercados e garantir o avanço do progresso econômico. Na virada do século XXI, com o advento do ESG, a concepção de livre mercado passou a desaparecer e, talvez não acidentalmente, a classe média venha sofrendo as consequências.
Na microeconomia, aonde os fenômenos de trocas econômicas ao nível das indústrias são estudados, o livre mercado se aproxima do conceito de “mercado de competição perfeita”. Para tanto, algumas condições estruturais precisam existir: produtos com pouca diferenciação, inúmeros agentes econômicos e baixas barreiras contra a entrada ou saída de concorrentes. Nesse caso, nenhum indivíduo tem poder de mercado e o preço a ser praticado é dado pelo ponto aonde a quantidade de produto ofertado iguala o volume demandado. A concorrência é livre e os agentes econômicos, ao disputarem mercados, perseguem soluções cada vez mais atraentes a seus clientes. Tornam-se, assim, os principais vetores de inovação, de ganhos de produtividade na economia e, em última instância, do progresso material. A classe média, ela própria produto do capitalismo, prospera, constituindo mercados consumidores cada vez maiores em um virtuoso modelo de compartilhamento dos benefícios do progresso econômico.
É difícil questionar um sistema que se tornou hegemônico, considerado a única alternativa de comportamento corporativo capaz de salvar o planeta do próprio homem.
No extremo oposto, a teoria descreve o monopólio, aonde as barreiras contra entrada de novos concorrentes são intransponíveis, inexistindo concorrência. O preço e quantidade de produção são definidos exclusivamente pelo monopolista no ponto em que sua rentabilidade seja maximizada. O volume ofertado será menor, o preço maior, e caso não haja risco de substitutos, os consumidores não usufruirão de novas versões de produtos. A concentração de renda é evidente.
Como a natureza é implacável, o empreendedor busca sempre capturar poder de mercado e garantir ganhos extraordinários a seu negócio. Para fazê-lo, ou ele se aproveita de barreiras naturais contra a competição, ou procura construí-las. Assim são formados os oligopólios, em que grandes empresas convivem com pequenos operadores em um ambiente de concorrência desigual.
Existem, portanto, dois tipos de barreiras contra a competição: as naturais e as artificiais. As naturais são aquelas relacionadas a características intrínsecas à indústria e à competência do agente econômico em aproveitá-las. Um bom exemplo é o agronegócio brasileiro. De um lado temos as indústrias de produção de grãos, de gado de corte e de leite. Como não há economias de escala na posse de terras, os produtores rurais não detêm poder de mercado; por maiores que sejam, são tomadores de preço. Não à toa, é nas grandes regiões produtoras que a classe média prospera. Já na agroindústria, a capacidade industrial instalada produz dinâmicas determinantes de economias de escala, o que favorece a concentração. Outros exemplos de barreiras naturais são a proeminência da marca, exigência de altos investimentos iniciais, acesso a baixo custo de capital e inovações disruptivas.
A barreira artificial é a regulação dos mercados. É aqui que ocorre o debate secular entre aqueles que defendem políticas de desregulamentação e competição e aqueles que defendem maior intervenção regulatória e inexorável concentração de mercado. Até o final do século passado, a regulação nas mais diversas jurisdições do mundo era competência exclusiva dos estados nacionais, por intermédio de seus respectivos sistemas de representação política. Na virada do século, com a justificativa de prevenir uma ameaça existencial, poderosos oligopólios financeiros articularam-se com a ONU na Europa para apresentar uma solução para humanidade: o ESG. Não obstante a suposta benevolência da iniciativa, fato é que se constitui em um poderoso instrumento de regulação global e promoção de oligopólios em escala jamais antes imaginada.
Façamos um breve retrospecto da instituição do mecanismo. Em 1997 surgiu nos círculos financeiros de Londres a ideia de que considerações não financeiras e subjetivas deveriam ser incluídas na determinação do valor das empresas. Era o Triple Bottom Line, composto pelo resultado econômico (lucro), sustentabilidade ambiental (planeta) e responsabilidade social (pessoas). Entre 2004 e 2005, dois estudos comissionados pela ONU e apoiados por alguns dos maiores conglomerados financeiros do mundo, incluindo o Banco do Brasil, lançaram o ESG. O primeiro, financiado pelo Ministério de Relações Exteriores da Suíça, trazia um conjunto de “recomendações da indústria financeira para melhor integrar questões ambientais, sociais e de governança à análise e gestão de ativos e à corretagem de valores mobiliários”. O segundo introduzia uma abordagem jurídica, afirmando que seria dever fiduciário das empresas financeiras integrar o ESG a seus processos de análise de investimentos.
O golpe de misericórdia na lógica de livre mercado se deu pela substituição do pilar de lucro econômico do Triple Bottom Line pelo G de Governança do ESG. A partir de então, nem mesmo os operadores daquelas indústrias naturalmente competitivas, como a produção rural, teriam poder exclusivo sobre seus próprios negócios, tendo que compartilhá-lo com meia dúzia de poderosos conglomerados financeiros. Os riscos, no entanto, continuariam a ser exclusivamente seus.
Passados vinte anos de sua incepção, vejamos em que pé estamos. A totalidade dos chamados “ativos financeiros ESG” atingiu a cifra de US$ 35 trilhões no final de 2020, vinte e quatro vezes o PIB brasileiro. A indústria de “fundos ESG”, parcela do mercado que é totalmente parametrizada por agências de ratings de ESG, totalizou US$ 793 bilhões no início de 2022. A agência líder desse mercado de ratings, a MSCI, detém 56% de participação de mercado. Qual o nível de poder de uma empresa que, em última instância, regula o acesso a porção tão considerável do mercado de capitais globais, a seu exclusivo critério e sob nenhuma supervisão?
E como anda a reputação do ESG no primeiro elo de transmissão do sistema, as grandes empresas? Segundo pesquisa global conduzida com 1.476 altos executivos, quatro entre cinco entrevistados creem que suas empresas, por não serem capazes de mensurarem seus esforços, prometem o que não podem cumprir e 72% acreditam que a maioria das organizações de sua indústria seriam pegas em fraude (greenwashing) se investigadas minuciosamente.
É difícil questionar um sistema que se tornou hegemônico, considerado a única alternativa de comportamento corporativo capaz de salvar o planeta do próprio homem. Desconfio, no entanto, que as distorções e reais propósitos do ESG sejam revelados ao menor escrutínio. Quem sabe, nesse caso, o legado das ideias de livre mercado possa retornar ao lugar que merece na cultura ocidental.
Eduardo Lunardelli Novaes, formado em Administração de Empresas pela FGV com MBA por INSEAD (França), é empreendedor e produtor rural. Foi Secretário de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão Jair Bolsonaro.