As plataformas de mídias sociais revolucionaram o mercado da publicidade. Hoje vivenciamos uma cibercultura. Para Pierre Lévy, a cibercultura significa o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço”.
Diante da cibercultura, completamente disseminada em nossa sociedade, o mercado da publicidade e propaganda segue em constante transformação, desenvolvendo-se com novos usos e costumes, onde é necessário que os envolvidos conheçam os seus direitos mais a fundo para não violarem nenhuma regra existente e também para reivindicarem a remuneração e visibilidade merecidas.
Muitas regras jurídicas estão presentes neste universo, como por exemplo o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, a Lei de Direitos Autorais e o Código Civil. No caso de influenciadores digitais, a remuneração da publicidade geralmente se dá mediante cessão de direitos de imagem, voz e produção fotográfica ou audiovisual àquele o qual encomenda a publicidade, cujo perfil nas plataformas digitais é o portfólio, a ferramenta de trabalho e o meio de exposição dessa publicidade pelo influenciador.
Mas e se o influenciador digital usar a imagem de seus filhos menores de 13 anos em seu material publicitário ou nesse portfólio? Ou ainda, se a própria criança é a influenciadora digital, cujo perfil, imagem e voz são gerenciados pelos pais? Neste caso estamos diante do “sharenting”, termo em inglês que combina as palavras share (compartilhar) e parenting (paternidade), utilizado para descrever a prática de pais que compartilham imagens de seus filhos na internet. É fato que a exposição excessiva de informações pessoais e imagens pode causar impacto na privacidade infantil, visto que estamos diante da geração de crianças mais observadas em toda a história.
Segundo uma pesquisa feita pela empresa britânica Nominet, já em 2017 pais e responsáveis publicavam online, por ano, cerca de 195 fotos de seus filhos. Antes de completarem cinco anos, essas crianças já tinham em média mil fotos suas postadas na internet. Além disso, outra pesquisa apontou que 50% das imagens difundidas em fóruns destinados à pedofilia foram inicialmente publicadas pelos próprios pais, muitas vezes de forma não intencional, em outras plataformas.
Já um relatório do banco britânico Barclays estima que "mais uma década de pais que compartilham excesso de informações pessoais online" produzirá 7,4 milhões de incidentes de fraudes de identidade até 2030, devido ao acesso facilitado a dados como nome, local de nascimento, idade, nome dos pais, foto de perfil, entre outros dados.
A exposição de imagem e voz de crianças pelos pais e responsáveis, principalmente se houver fins comerciais, deve ser regulada pelo Poder Público
A França recentemente aprovou no parlamento um projeto de lei que visa a responsabilizar os pais “pelo direito à privacidade dos filhos que não possam consentir que suas imagens sejam publicadas on-line. Em casos extremos, um juiz de família pode até retirar o direito de os pais compartilharem as imagens, caso seja considerado excessivo ou prejudicial. A proposta também visa punir pais influenciadores que ganham seguidores e dinheiro com o compartilhamento de imagens das crianças. Nesses casos, a renda adquirida por meio do uso comercial de fotos e vídeos deve ser depositada em uma conta a que os jovens tenham acesso a partir dos 16 anos. O texto prevê ainda o 'direito ao esquecimento', segundo o qual as crianças poderiam ter suas próprias fotos e vídeos removidos da internet posteriormente, se assim desejarem” (Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2023).
No Brasil, crianças e adolescentes menores de 16 anos, consoante art. 3º do Código Civil, são considerados pela lei absolutamente incapazes, razão pela qual não detêm capacidade jurídica e precisam de um representante legal responsável para tomar as decisões de sua vida civil, inclusive referentes às suas relações comerciais e o uso de sua imagem e voz, direitos constitucionais personalíssimos. Os responsáveis por estes menores, por força do Código Civil, são os seus genitores, o guardião, os adotantes, curadores ou tutores legalmente constituídos. Para o caso de genitores separados ou divorciados, o responsável será o guardião do menor, art. 1.583, §1º Código Civil.
Segundo as regras das próprias plataformas, crianças não podem criar perfis em redes sociais antes dos 13 anos e, como dito, no Brasil não detêm total capacidade jurídica para gerir sua vida até completarem 18 anos ou serem emancipadas. Logo, a exposição de imagem e voz de crianças pelos pais e responsáveis, principalmente se houver fins comerciais, deve ser regulada também pelo Poder Público, considerando que os direitos das próprias por vezes poderiam ficar em segundo plano em detrimento aos interesses dos responsáveis diante dos fins comerciais da publicidade realizada em seus perfis ou dos perfis por si gerenciados onde a imagem da criança é utilizada.
Além disso, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 3.444/2023, que “define a atividade de influência em meio eletrônico, altera a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 para impor a necessidade de autorização judicial para participação de crianças em gravações audiovisuais a título oneroso, estabelece regras relativas à publicidade e uso de imagem e obrigações para agentes e provedores digitais” e se aproxima, em diversos aspectos, das leis francesas sobre o sharenting.
Além disso, o Projeto de Lei nº 2.259/2022 visa estabelecer regras para o exercício da atividade de influenciador digital mirim, enquanto o Projeto de Lei nº 3066, de 2022, visa alterar o Estatuto da Criança e Adolescente para prever como crime a superexposição nociva nas redes sociais e páginas de internet.
O tema ainda é novo e cercado de discussões, mas, infelizmente, nenhum dos projetos de lei brasileiros contempla a proteção de crianças e adolescentes cuja imagem vem sendo exposta na internet pelos pais nos casos de não monetização.
Letícia Soster Arrosi é doutora em Direito Comercial com ênfase em Propriedade Intelectual pela USP, mestre em Direito Privado com ênfase em contratos e especialista em processo civil pela UFRGS, bacharel em ciências jurídicas e sociais pela PUCRS; e advogada atuante em resolução de disputas e consultas em Direito da Moda, Direito do Entretenimento, Direito Civil, Direito Empresarial e Propriedade Intelectual. Frederica Richter é advogada, Mestre em Propriedade Intelectual e Transferência da Tecnologia para Inovação na UFSC; representante regional da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI); diplomada em Fashion Law pelo Centro Latino-americano de Economia Humana, Uruguai; e presidente da Comissão de Direito da Moda da OAB/SC.
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