Com seu jeito despretensioso, uma simplicidade que sugere baixo orçamento e tendo como temática a exótica vida dos judeus ortodoxos de Jerusalém, Shtisel (2013) ganhou projeção na crítica como uma espécie de série cult, na contramão das apostas fáceis e estereotipadas de outros produtos com o selo Netflix.
Enfadonho para alguns, esquisito para a maioria, Shtisel é o seriado perfeito para o gosto de quem procura curiosidades culturais e uma narrativa com poucos clichês e militância social. Como ainda há público para séries que ao menos tentem contar histórias honestas, e que deem mais lugar à experiência estética do que a elaborados – quando não ficcionais – dramas sociais, a série surpreendeu pela boa aceitação. O ritmo arrastado e o foco em banalidades do cotidiano dão a impressão de acompanharmos a vida comum. Não há aventura, ação ou dramas exagerados. O exagero que há deriva das ênfases culturais sobre determinados temas, ao passo que outros, como casamentos arranjados, são tratados de modo desapaixonado e quase banal.
Com o toque de gênio da direção, contudo, o que parece ser o problema torna-se o grande atrativo do programa, e em vez de entreter pela trama, entretém, e muito, pela falta dela. Não que não haja trama, pelo contrário. As temporadas possuem plot claro, os diferentes núcleos da novela são muito bem delineados, e o público entende imediatamente qual é a questão de cada personagem. Esses eixos temáticos, contudo, frequentemente dão lugar a trivialidades assustadoramente vazias, fazendo com que nós, enquanto público, nos questionemos sobre a intenção do roteiro, ou se esta não é uma daquelas histórias pós-modernas que visam explicitar justamente a falta de sentido de tudo.
Ao lado desse proposital e permanente incômodo, o que mais se destaca no seriado é o elemento simbólico que faz referência ora ao transcendente (Sagrado? Fica a dúvida), ora à vida em si mesma, e em como esses elementos cotidianos apresentados são tão importantes, tão vitais.
Nas entrelinhas dos temas explicitados, entretanto, as cenas habilmente construídas gritam a mensagem de um sentido adicional; não um sentido oculto, apenas não vocalizado.
Ao lado desse proposital e permanente incômodo, o que mais se destaca no seriado é o elemento simbólico que faz referência ora ao transcendente (Sagrado? Fica a dúvida), ora à vida em si mesma, e em como esses elementos cotidianos apresentados são tão importantes, tão vitais.
Desde o começo, uma coisa que chama muito a atenção são os olhares silenciosos. Esses olhares prolongados, significativos, acompanhados de nada mais que a sensível e melancólica trilha sonora, fazem explodir na consciência o drama da vida, da existência humana. Na primeira temporada a técnica tem por base o poderoso olhar do protagonista, Akiva. O ator tem olhos penetrantes e tristes diante dos quais é impossível não ficar incomodado, e o perfil triste e perdido do pintor casa perfeitamente com esse olhar marcante.
A essa conjunção feliz entre o olhar típico do protagonista e a intenção do diretor soma-se uma trilha sonora que dá ensejo a uma introspecção e um intimismo dignos de Schubert, Chopin ou Kierkegaard. A música-tema provoca exatamente a sensação de que esses olhares perdidos e melancólicos escondem demorados e angustiantes processos de digestão sentimental. Sentimos que os personagens, particularmente o protagonista, estão tentando lidar com o que lhes ocorre.
A presença de Ayelet Zurer como a personagem que faz par romântico com Akiva inevitavelmente rouba muitas cenas ao emprestar profundidade dramática inesperada a uma série discreta e despretensiosa.
Na reta final, contudo, principalmente da metade da segunda para toda a terceira temporada, aqueles olhares marcantes que bem caracterizam a série deslocam a atenção, alterando a hierarquia de importância dos personagens, muito graças à força dramática das três atrizes que interpretam Libbi, Ruchani e Racheli. Diferentemente do que ocorre com Akiva, os silêncios das atrizes substituem as soluções banais que a linguagem poderia propiciar, e ficamos com a sensação de que o silêncio não era espera e digestão, e sim resposta. Essas respostas silenciosas vão ganhando corpo até que fique claro o seu caráter ético e religioso, que, ao final, dão o tom da história.
Os sucessivos encontros com o silêncio, que os próprios personagens interpretam como dissabores e azares do destino algumas vezes, confirmam-se como presença implícita e oculta daquilo em torno de que giram as vidas muito banais das personagens: Deus. Com certa surpresa, o telespectador enxerga que o aparente contraste entre a superficialidade da vida religiosa formal e as amarguras e pequenos dramas da vida não constitui contraste algum. Todos os elementos da vida estão perfeitamente integrados – ao menos na visão dos crentes, o que é o caso da família Shtisel –, e seu eixo central e a expectativa constante do desvelar do sentido da vida de cada um.
Humberto Schubert Coelho é professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora, codiretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes-UFJF), e foi recentemente apontado para uma cadeira na Academia Brasileira de Filosofia.