Há governantes que não sabem dividir o poder. Ou não conseguem trabalhar com o poder dividido. A democracia, em definição moderna, é o poder divido por definição. Alguns governantes não querem meio poder. Querem o poder total. Não são apenas ditadores. Os maus-tratos com a oposição são comuns em sistemas políticos em que os poderes se contrabalanceiam mas nos quais grandes políticos chefiando um poder se sentem desconfortáveis com a "concorrência". Barack Obama é um desses políticos. Às voltas com o Legislativo sabiamente recusando sua gastança desgovernada, reconstrói a narrativa dos fatos para sangrar os republicanos como grandes vilões, enquanto ele, sozinho, tenta salvar a América.
O orçamento americano prevê as despesas recorrentes. Não aprovadas até a data limite, são simplesmente cortadas ao contrário da esbórnia brasileira, em que se usa orçamentos de anos anteriores sem dó. Elas incluem boa parte do que o governo gastará, vigiadas de perto pelos deputados (representatives). Não haver o "acordo" entre democratas e republicanos, portanto, gera o chamado shutdown, um "fechamento" para balanço geral, que afeta todo o país: desde funcionários públicos federais parados até as verbas que mantêm o Memorial da Segunda Guerra, em Washington para onde Obama mandou sete agentes das forças de segurança para impedir uma manifestação pela sua manutenção, sem ter enviado nenhum desses agentes para Bengazi, na Líbia, durante um atentado terrorista.
Mas são os congressistas que escolhem onde se corta. A atual composição das casas indica maioria republicana na Câmara e maioria democrata no Senado. Eis que surge Obama, e vincula o seu Obamacare aos gastos governamentais. O Obamacare já passou como lei, faltando a votação de seu orçamento. É estratégia republicana aberta e declarada, agora, discutir esses novos gastos governamentais, que já estão deixando a América à bancarrota.
Não se discute, portanto, o Obamacare, mas seus custos. Obama, vinculando-os ao orçamento federal na marra como uma coisa única, vende a esparrela de que está fazendo uma lei pelos pobres, e os malvados republicanos lutam contra uma lei já aprovada. Sabendo que toda a imprensa mundial está a seu lado (onde mais recebe críticas é em seu próprio território), sua narrativa cola como grude.
O Poder Executivo ser contrabalanceado pelo Legislativo foi sempre admitido como norma nas democracias modernas. É como uma indicação de juiz ao STF: ela parte do Executivo, mas o juiz precisa de uma sabatina dos deputados. Isso nunca antes havia sido questionado em mais de 200 anos de república americana.
A historieta de Obama passa à retórica violenta. Diz que os republicanos estão armando um golpe de Estado, mirando uma lei já votada. Bill Clinton passou 28 dias com um shutdown em mãos sem apelar para essas invencionices. Newt Gingrich, então presidente da Câmara, acertou as contas para o adversário democrata, que, após se submeter a contragosto à austeridade, forjou a ideia de que ele próprio construiu o arranjo. Its the economy, stupid.
Hoje a situação se obnubila, e Barack Obama, o presidente plenipotente com um Nobel da Paz em mão, pode apelar à busca por inimigos da pátria, como bem clamou seu guru, o anarquista radical Saul Alinsky. É do feitio da mentalidade dos golpistas encontrar golpistas em cada cérebro que saiba ligar pontos sem precisar do poder central e de seu sorridente rosto que sabe ganhar eleições.
Flávio Morgenstern é analista político do Instituto Millenium e colaborador do site www.implicante.org.
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