Ninguém achava que o pequeno Ibrahim ia sobreviver. Com um ano e meio de vida, belga de nascimento, ele estava desnutrido, desidratado e não parava de vomitar por causa de um vírus estomacal. No Al-Hol, o campo de refugiados do nordeste da Síria em que estava, a temperatura invariavelmente chegava a 37°C já no meio da manhã, a assistência médica era mínima, e a água potável, quando havia, geralmente estava contaminada por bactérias.
Um vídeo do menino, inquieto e vomitando muito, saiu desta área desértica e isolada da Síria e conseguiu chegar às suas tias na Bélgica, que o compartilharam com médicos de lá. “Não vou mentir para você, essa criança vai morrer”, um deles decretou. Outro achou que era apenas uma questão de horas. Uma missão belga de resgate e repatriação de crianças órfãs chegou ao acampamento em junho e fez de Ibrahim sua prioridade número um – só que o menino não aparecia na lista oficial de presos. Ninguém tinha ouvido falar dele. O que acontecera ao pequenino que estava à beira da morte?
O campo de Al-Hol, onde as imagens foram feitas, abriga 73 mil pessoas, na maioria mulheres e crianças que já tiveram alguma ligação com o Estado Islâmico, amontoadas em barracas frágeis, sem acesso a saneamento básico mínimo, água potável ou fornecimento de alimentos. Até julho, pelo menos 240 crianças tinham morrido aqui dentro ou a caminho do acampamento. Na semana da minha visita, no fim de junho, um garoto de 4 anos morrera afogado depois de tropeçar e cair em uma latrina de fosso; semanas antes disso, um de 7 morrera queimado dentro de uma barraca. A única coisa que os parentes em sua cidade natal receberam foi uma foto do corpinho carbonizado. As crianças ainda saudáveis vão se tornando cada vez mais selvagens nos confins desse espaço.
Originalmente construído no início dos anos 90 para receber os iraquianos que fugiam da primeira Guerra do Golfo, o campo de Al-Hol hoje em dia é chamado de muita coisa, inclusive “campo da morte”, “provação divina”, “minicalifado do EI” e “Guantánamo no deserto”. A maioria de seus habitantes chegou no início deste ano, fugindo da luta na região de Baghouz, último reduto do EI; durante o período mais intenso, chegava a receber 10 mil mulheres e crianças em um único dia, incluindo as adeptas mais ferrenhas, aquelas dispostas a comer mato e dormir ao relento até o grupo perder o último trecho de seu território.
Sempre se soube que o colapso do califado do EI seria caótico, mas ninguém imaginou o tamanho do emaranhado que se reflete hoje no Al-Hol
O número de crianças estrangeiras chega a quase 8 mil, ou levadas pelos pais para a Síria ou nascidas aqui, consequência da série de relações obrigatórias entre os combatentes e as muhajirat, ou mulheres migrantes, que se tornaram o principal atrativo de recrutamento do EI e sua imposição mais cruel às mulheres.
Hoje esses pequenos estão perdidos, muitas vezes literalmente. Estão crescendo entre mulheres que os veem como a próxima geração de jihadistas. Os que nasceram em determinadas nações, principalmente Rússia, Turquia e algumas repúblicas da Ásia Central, voltam para casa mais cedo, mas os ocidentais não têm a mesma sorte: alguns foram abandonados pelos países dos quais são cidadãos; outros não são encontrados, mesmo pelas nações dispostas a aceitá-los. A perspectiva de um retorno breve é remota, mas a crença geral, ainda que não se fale abertamente, é a de que muitos vão acabar retornando, mais cedo ou mais tarde.
Estive no campo para entrevistar algumas mulheres, na esperança de conhecer um pouco das detentas, saber até que ponto ia seu compromisso com o jihadismo e quais os riscos que representam para seus países de origem e para as outras mulheres e crianças com quem convivem – e saí de lá questionando o conceito de cidadania, desgastado, ameaçado de extinção. O que realmente significa ser cidadão de uma democracia ocidental quando uma combinação de medo e conveniência política resulta no abandono de milhares de crianças nessa prisão a céu aberto, em pleno deserto?
Sempre se soube que o colapso do califado do EI seria caótico, mas ninguém imaginou o tamanho do emaranhado que se reflete hoje no Al-Hol, com as mulheres e as crianças estrangeiras vivendo em uma situação de limbo legal, mantidas em um território controlado não por um Estado, mas sim pela milícia curda na Síria que lutou ao lado da coalizão norte-americana contra o EI e agora quer instaurar um território autônomo. E elas só permanecem ali porque grande parte dos governos dos 54 países de onde provêm se recusa a aceitá-las de volta.
Entre elas, crianças britânicas, norte-americanas, francesas, alemãs e canadenses, sendo a maioria absoluta muito jovem, com menos de 8 anos. Dois órfãos da Flórida teriam passado por ali no início do ano; segundo o que se sabe, a mãe os tinha abduzido e levado para a Síria, e antes de morrer confiou os dois a outra guerrilheira radical do EI. O pai dos pequenos ficou sabendo que essa mulher, uma britânica, ocultou a identidade dos dois e os tirou do campo, levando-os para Idlib, província controlada por grupos rebeldes dominados por jihadistas. Esconder crianças e mudar o nome delas é a coisa mais fácil no Al-Hol; difícil é descobrir o destino daquelas que desapareceram.
Outra coisa complicada é determinar quantas vivem no campo, além da paternidade e da nacionalidade – primeiro, porque a lista de prisioneiros está incompleta e não bate com os cadastros oficiais das autoridades; depois, há aqueles que estão aqui, mas não constam de relação nenhuma, e as que têm o nome registrado, mas não se encontram no campo.
Muitas mulheres estão sem passaporte porque o documento foi queimado ou confiscado na chegada ao território do EI. Algumas disputam a maternidade de crianças cujos pais morreram, para aumentar suas chances de repatriação; nesse aspecto, contam com a ajuda das autoridades curdas sírias, que se recusaram a separar mães, as que alegam ser mães e os pequenos. Outras, como a britânica que sequestrou os dois órfãos norte-americanos, disputam as crianças não porque sejam seus filhos, mas porque as veem como a próxima geração de jihadistas, que não devem ser devolvidas à “Terra da Descrença”.
Embora suas mães estejam confinadas a um anexo vigiado o tempo todo e só tenham permissão de sair sob escolta armada, as crianças estrangeiras podem se movimentar livremente pelo campo, mas, como não há escola e nenhum espaço para brincarem, passam o tempo atormentando umas às outras.
Na tarde da minha visita, ouvi um choro sentido vindo de uma viela próxima ao pavilhão estrangeiro: uma menininha de talvez 7 ou 8 anos, de abaya e jilbab pretos como os de uma mulher adulta, estava sentada sobre uma pilha de caixas de alimentos doados por instituições humanitárias, tentando afastar um grupo de meninos que tentava roubar um caixote de cuscuz. Ao mesmo tempo que os repelia, ela chorava copiosamente.
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Ali perto, algumas ainda mais novas brincavam de atirar com armas que tinham feito a partir de luvas cirúrgicas roxas cheias de ar. De vez em quando, uma mulher passava carregando o corpo sem vida de um bebê ou criança bem pequena, indo buscar garrafas d’água no mercado ou tentando conseguir acesso à clínica. Dá nervoso ver como os bebês desnutridos começam a se parecer com pássaros, com tanta pele sobrando e os ossos saltados em ângulos pontudos.
Há alguns meses, a ideia de que o Al-Hol não é apenas um flagelo humanitário, mas também um foco de ressurgência do EI, começou a ganhar corpo. Um relatório de agosto do Departamento de Defesa já alertava para a possibilidade de o grupo insurgente procurar recrutas aqui e para o fato de que as residentes do campo são muito suscetíveis à sua “mensagem, coerção e aliciamento”. Alguns desses indícios podem ser corroborados pela insistência de Washington, já repetida duas vezes por Trump, em estimular os governos europeus a repatriar aqueles que saíram para se filiar ao EI, bem como as mulheres e as crianças.
De fato, atualmente o lugar dá a impressão de ser uma continuação do califado, mais que qualquer outra coisa. Todas as estrangeiras que vivem no anexo usam abaya, a túnica negra longa que é exigida pelos militantes em seu território; algumas até completam a vestimenta com luvas negras e niqabs, ou mesmo o véu negro sobre o rosto, cobrindo praticamente os olhos.
Tive dificuldade em constatar se as mulheres violentas e perigosas eram uma pequena, mas assustadora minoria, como algumas sugeriram, ou um grupo de tamanho mais considerável; muitos dos que trabalham no campo são inimigos jurados do Estado Islâmico e encaram qualquer mulher árabe conservadora e revoltada que surge ali como uma legalista do EI.
Vários residentes do campo me disseram que tudo mudou com a chegada em massa das mulheres de Baghouz; a presença das baghouziat, como são chamadas em árabe, transformou a vida de todos os seus habitantes, que tinham rejeitado e fugido do EI meses ou até anos antes. As moradoras mais antigas, por exemplo, que tinham começado a relaxar um pouco, abolindo o véu de rosto ou usando cores mais leves, de repente voltaram a se cobrir inteiramente de preto.
Assim que se instalaram, elas começaram a exigir que as outras que já estavam lá obedecessem a todas as regras de comportamento do EI, açoitando as que viam fumando. Quando as outras se reuniam para ouvir a música tocada pelos oficiais, as radicais as castigavam, jurando que quem ouvia o pop haram receberia o fogo do inferno. Ao anoitecer, para punir a atitude que consideravam reprovável vista durante o dia, incendiavam as barracas das “malcomportadas”. Em maio, uma mulher chegou a esfaquear um dos guardas, que acabou morrendo. “Elas organizam patrulhas hisba no campo; nós só cuidamos dos limites físicos”, disse um dos guardas, referindo-se às brigadas femininas da polícia da moralidade que circulam pelas cidades do EI.
As crianças que passaram grande parte do ano neste lugar são originárias de dezenas de países diferentes, e cada grupo – como as que têm cabelo tão loiro que parece branco, as de olhos asiáticos, as de traços somalis – é tão característico e multicultural que parece até forçado, como se elas tivessem sido selecionadas a dedo para uma brochura. Elas me fizeram lembrar das postagens do EI nas redes sociais em 2014, quando os recrutadores seduziam as jovens muçulmanas do Ocidente com a promessa de uma terra onde cor da pele, raça e tribo não eram detalhes importantes.
O que testemunhei foi a segunda visita da missão belga ao campo. A equipe de 11 membros incluía psicólogos, um pediatra, um cirurgião e o diretor da Child Focus, ONG responsável pela iniciativa. Segundo Gerrit Loots, o psicólogo líder da turma, a maneira de brincar e o comportamento dos pequenos tinham se deteriorado significativamente desde suas primeiras observações: sua capacidade de concentração ficara menor; quando ele lhes dava brinquedos, muitas vezes jogavam no chão, frustrados; no geral, cooperavam menos. “O comportamento dessas crianças reflete o que está acontecendo no campo. A tensão psicológica, a desesperança, tudo se revela em seu bem-estar. Parte da urgência em levá-las de volta é consequência do desejo de não retardar ainda mais seu desenvolvimento, já bem atrasado. Precisamos ter cuidado para que essa discrepância não atinja o ponto da desesperança, quando elas não tiverem mais condições de atuar em nossas escolas”, explica.
Os belgas examinaram 41 crianças, todas empoeiradas e sujas, mas abertas e animadas por conhecer a equipe, que lhes entregou pacotes enviados pelos parentes na terra natal. A maioria fala holandês ou francês, mas nunca esteve na escola. Um menino de 7 anos em Ain Issa, outro campo que abriga mulheres e crianças estrangeiras, fez um desenho para os profissionais, mas não conseguiu escrever seu nome.
Al-Hol não é apenas um flagelo humanitário, mas também um foco de ressurgência do EI
Conversando com uma alemã e uma sueca em Al-Hol, perguntei o que achavam da instalação de uma escola ali e ambas se mostraram contra a ideia. Uma disse: “Depende do que vão ensinar; se fosse só árabe, quem sabe”. A outra: “Por que eu haveria de deixar meus filhos aprenderem algo de pessoas que nem são donas desta terra?”
Também reclamaram dos guardas – que eram grosseiros, usavam um tom irritado com elas o tempo todo, às vezes até arma de eletrochoque, e tiravam os alimentos sem glúten de uma celíaca. Comentei que a maioria provavelmente tinha perdido um familiar na luta contra o EI e que sua história se refletia nesse comportamento. As duas me olharam, piscando, como se a ideia fizesse sentido, mas nunca tinham pensado nela antes; a expressão delas me lembrou a dos universitários meus alunos. E aí caiu a ficha de que estava falando com adolescentes.
Enquanto isso, na Bélgica, quando os jornais começaram a noticiar o retorno dos órfãos, Loots e seus colegas receberam uma avalanche de mensagens de ódio, um inclusive por meio do perfil da filha no Facebook, com o termo “bomba-relógio” aparecendo em grande parte dessas manifestações.
A ideia de que o futuro dos filhos dos jihadistas esteja, sob algum aspecto, manchado e que estejam destinados a ser violentos também é tão fantasticamente errada quanto comum. No nordeste da Nigéria, as mulheres devolvidas pela insurgência jihadista do Boko Haram se perceberam rejeitadas por suas comunidades, e também seus filhos, ainda que tenham sido abduzidos do grupo; a ideia de que estes tenham herdado o “sangue ruim” dos pais gera um estigma tão intenso que os grupos de ajuda humanitária já registram diversos casos de infanticídio. Na cobertura da imprensa europeia, essas crianças vivem nas manchetes, e são chamadas de “crias do EI”.
Ainda que o destino das mulheres nos campos continue incerto, amarrado pela teia das políticas internas frágeis dos governos europeus e temores com a segurança, muitos reconhecem que os órfãos serão levados de volta: vários tribunais espalhados pelo continente, basicamente superando as apostas de suas autoridades, já exigem a repatriação das crianças. Muitos países, porém, alegam que a tarefa é difícil, se não impossível.
Em janeiro, o fundador do Pink Floyd, Roger Waters, emprestou seu avião para ajudar a resgatar duas crianças de Trinidad e Tobago no Al-Hol, furando essas justificativas. Desde então, o fluxo de retirada de órfãos continua, ainda que em ritmo lento. Enquanto isso, os pequenos simplesmente esperam, vendo as mulheres darem à luz, nas barracas, a bebês que morrem em questão de dias; aprendendo a viver com estilhaços encrustados no corpo; não conhecendo nada mais da vida além do califado do EI e este campo de concentração que o imita tão bem.
Azadeh Moaveni é analista de gênero da ONG International Crisis Group e autora do livro ainda inédito Guest House for Young Widows: The Women of Isis.
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