"Aproximadamente metade dos países que superam a guerra reincide na violência após cinco anos", observou o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em 2005. No caso da Colômbia, que já ultrapassou mais da metade desse prazo, a paz permanente não é garantida. O acordo de novembro de 2016 encerrou uma luta de meio século com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, mas há motivos cada vez mais fortes de preocupação.
O segundo homem forte do grupo guerrilheiro esquerdista, Iván Márquez, que liderou a equipe de negociações em Havana, pegou em armas novamente. Em 29 de agosto, ele postou um vídeo no qual aparecia de uniforme verde-oliva, acompanhado de líderes de algumas das unidades mais temidas da organização, para acusar o governo colombiano de não cumprir suas promessas e dar início a um novo movimento de luta.
É um golpe e tanto para o frágil processo de paz, mas não significa seu fim. É possível que não acabe dando em muita coisa, já que as pessoas no vídeo representam a ala mais radical das Farc: ideólogos com longo histórico de combate e experiência criminal, milhares de vítimas e um desconforto persistente com o processo de paz. E a organização é hoje um partido político, cuja liderança reagiu rapidamente, rejeitando a mensagem com veemência.
As Farc deixaram de existir como insurgência nacional, com comando coerente e controle territorial, no fim de 2016, e o vídeo de Márquez não altera esse fato. Segundo o acordo fechado naquele ano, 13.049 guerrilheiros foram desmobilizados; dois anos e meio depois, apenas 1.052, ou 8%, continuam com destino incerto, segundo a Fundação Ideias para a Paz, de Bogotá. Em matéria de cenário pós-conflito, esse é um número pequeno de reincidentes.
O processo de paz não está morto, mas a Colômbia terá de fazer mudanças se quiser evitar entrar para a lista de países que voltam à guerra
Muitos deles se armaram novamente – e é provável que estejam entre os 12 mil membros dos grupos armados e/ou criminosos que ainda operam naquele país, espalhados por organizações guerrilheiras menores como o Exército de Libertação Nacional (ELN), as milícias paramilitares e/ou do narcotráfico, e cerca de 20 grupos "dissidentes" compostos ou liderados por ex-Farcs. Estes últimos hoje contam com algo entre 2 mil e 2,5 mil integrantes, entre guerrilheiros que nunca foram desmobilizados e novos recrutas.
É bem provável que a intenção de Márquez seja a de se relacionar com essa dissidência para fazer crescer seu "movimento" – mas, se ele tem combatentes, e não apenas um círculo de homens envelhecidos e magoados, não foi o que o vídeo de 29 de agosto mostrou.
Haverá uma disputa entre essa facção e o partido político das Farc para atrair os ex-combatentes, disso não há dúvida. Poucos estão em situação confortável, já que a assistência de reintegração está demorando a chegar, mas faz três anos que um cessar-fogo permanente passou a valer. A maioria deles mudou de vida, muitos constituíram família. São poucos os que querem voltar a virar alvo – e grandes as chances de a maioria maciça continuar desmobilizada, incluindo a liderança das Farc.
De qualquer forma, não devemos subestimar o perigo. Se o governo colombiano não conseguir manter o acordo de paz no rumo certo – principalmente para aumentar sua presença no interior, há muito abandonado –, o grupo de Márquez pode crescer e se transformar em uma força com pelo menos alguns milhares de membros. E o surgimento de uma nova guerrilha dessas proporções esvaziaria o motivo pelo qual a Colômbia escolheu negociar com as Farc.
A deserção de Márquez é também politicamente danosa ao processo de paz. O acordo de 2016 tem inimigos poderosos, incluindo grande parte do próprio partido de centro-direita ao qual o presidente Iván Duque pertence. A simples existência de um novo grupo dissidente dá munição àqueles que preferem fomentar ofensivas militares a apostar no desenvolvimento rural e outras exigências do acordo.
E há uma dimensão internacional problemática também. Márquez diz no vídeo que o grupo está na região do Rio Inírida, ao longo da fronteira com a Venezuela – e é bem provável que os guerrilheiros da nova formação passem a maior parte do tempo ali no país vizinho, onde o governo Maduro é tolerante e até mesmo se alinha com a organização esquerdista colombiana, o que aumenta grandemente as chances de escalada de um conflito regional.
É notável que tenha levado tanto tempo para que alguém do alto escalão da guerrilha desertasse, dadas a lentidão e a parcialidade com que o governo vem cumprindo sua parte no acordo de paz. É verdade que muitas de suas promessas exigiam aprovação na forma de legislação, mas, até agora, 57% das leis necessárias para a efetivação do tratado estão paradas no Congresso, e algumas nem sequer entraram em vigor.
Os esforços para reintegrar os ex-combatentes à sociedade e à economia sofrem de lentidão e atrasos crônicos. Atualmente, embora todos estejam recebendo um soldo mensal, somente entre 4 mil e 12 mil encontraram emprego ou receberam a assistência prometida para projetos agrícolas ou a abertura de pequenas empresas. As agências criadas para estabelecer as provisões rurais do acordo devem ter o orçamento reduzido em mais de 10% em 2020.
O governo se mostra incapaz de lidar com a onda terrível de ameaças, ataques e assassinatos de líderes de vários grupos da sociedade: por todo o país, associações agrícolas, vítimas, participantes de programas de substituição de coca, conselhos comunitários, comunidades afrocolombianas e assentamentos indígenas convivem com o terror. Num momento em que a democracia local deveria estar florescendo, há líderes locais sendo assassinados a cada dois dias e meio. Ex-membros das Farc também estão sendo vítimas de ataques e mortes, cujos números já estão entre 126 e 132.
Os ex-guerrilheiros precisam de algum tipo de certeza em relação ao futuro. Duque e seu partido lançam ataques verbais e legislativos frequentes ao sistema judiciário pós-conflito (por exemplo, ao fato de os tribunais, cuja estrutura levou mais de ano e meio para ser negociada, concederem penas leves a quem confessar crimes de guerra). Isso só faz aumentar a incerteza entre os membros das Farc, insuflando incriminações por parte dos linhas-duras como Márquez, que acusam o governo Duque de encontrar desculpas para prendê-los ou extraditá-los.
O processo de paz não está morto, mas a Colômbia terá de fazer mudanças se quiser evitar entrar para a lista de países que voltam à guerra no prazo de cinco anos – e, para isso, seu governo tem a obrigação de refutar a narrativa da facção extremista das Farc.
Duque deveria visitar imediatamente algumas das 13 zonas onde os guerrilheiros foram desmobilizados em 2017 – e onde um terço deles ainda vive –, ouvir suas preocupações e se comprometer a reduzir os obstáculos burocráticos e orçamentários que estão amarrando a assistência à sobrevivência deles. A legislação de paz pendente também deve ser agilizada no Congresso com o apoio de seu governo. A presença do Estado precisa ser sentida pelo pessoal das áreas rurais; Duque precisa parar com os ataques de todo tipo, para acabar com a preocupação que causam entre os ex-combatentes.
Comprometer-se a cumprir o acordo na íntegra coloca o presidente em rota de colisão com a poderosa ala de extrema-direita de seu partido, que odeia o tratado fechado com as Farc e o força a trabalhar com a oposição, que é pró-acordo, mas esse não é um resultado ruim.
Há meses, nenhum representante do governo dos EUA diz uma palavra de apoio público ao processo de paz – afinal, ele não é prioridade para a administração Trump, cuja política colombiana se resume a "erradicar a coca e conter a Venezuela". Entretanto, o princípio-guia do novo embaixador, Philip Goldberg, deve ser a corroboração pública, regular e visível da paz, e o Congresso norte-americano, como faz desde 2017, deve continuar resistindo e anular os esforços da Casa Branca de cortar os US$ 450 milhões anuais em ajuda à Colômbia, grande parte dos quais vai para a manutenção do acordo.
Adam Isacson é o diretor de supervisão em defesa do Escritório de Washington na América Latina (WOLA, na sigla em inglês).
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