O título deste artigo é emprestado do maravilhoso romance filosófico – recomendadíssimo – de meu querido amigo e companheiro de docência Ivo di Camargo Jr., no qual é narrado o caminho do professor universitário Giulio em busca do Übermensch nietzscheniano. Embora não partilhemos da mesma admiração pelo “queridinho das mães brasileiras”, nosso ponto de partida é o mesmo: por que só o Chico Buarque é feliz no Brasil? Talvez porque já não partilhe há tempos das angústias abaixo do Equador. Por aqui, pisa apenas para recarregar o saldo bancário em suas turnês. Afinal, o vinho francês e a casa em Paris constituem uma cara terapia. Mesmo assim, o compositor mantém seu tradicional hobby de enunciar asneiras políticas. Há pouco tempo, iluminou-nos afirmando que os principais problemas do país são o conservadorismo e a censura na educação. Segundo ele, o espectro fascista nos ronda. A saída? Resistência cultural, principalmente nos seus caríssimos shows. Como não ser feliz assim?
É lugar comum mundo afora que não há povo mais bem humorado que o tupiniquim. É a mais pura verdade. Piadas com a própria desgraça têm efeito catártico nestas bandas. Para o brasileiro, problemas e crises são como ruídos de trânsito para o paulistano: tão naturais que, quando ausentes, criam a impressão de que há algo terrivelmente errado. O descalabro é contextual. Não há isenção. Logo, a escolha desta temática (educação) dá-se, obviamente, pela sua importância estrutural. Admito também que por pirraça. Estaria Chico correto sobre a educação do Brasil?
Inevitavelmente, o assunto orbita em destaques como as péssimas – e inegáveis – condições no exercício da docência. Trabalha-se e desgasta-se muito, mas ganha-se pouco. Mesmo que inconteste, tratar do problema apenas por tal eixo obscurece outros importantes aspectos, como a terrível formação de docentes e o abuso da prática pedagógica. Apesar de ter frequentado salas de aula em algum momento da vida, a população brasileira pouco compreende os desafios rotineiros da profissão, dos quais se destacam os aspectos técnicos, humanos/interpessoais e contextuais. A exaustiva rotina demanda inventividade, paciência e maleabilidade. Sem isso, não se constrói prática pedagógica produtiva. O professor de Humanas, por exemplo, somente cativa e instiga quando consegue demonstrar cotidianamente a relação do conteúdo lecionado e o contemporâneo de seus alunos. O docente carrega o pesado fardo de mostrar a uma criança ou adolescente a importância de sua área em suas diferentes facetas.
Enquanto as universidades públicas ainda respiram, catalisam a espiral de sua própria decadência
Alguns movimentos políticos recentes têm levantado uma nova bandeira: a corrupção ética do ofício. Argumenta-se que um número significativo de professores, aproveitando-se da desigual relação entre mestre e aprendiz, opta por transformar a sala de aula em palanque, agindo como porta-vozes político-ideológicos. Assim, o conteúdo transmitido teria como único objetivo legitimar determinada perspectiva política. As intenções do indivíduo são centrais nessa argumentação. Contudo, trata-se de uma leitura simplista, mesmo que correta em suas percepções sintomáticas. Há inúmeros e complexos fatores que confluem para a formação desse fenômeno.
No ensino básico (infantil, fundamental e médio), o conteúdo a ser trabalhado em sala de aula, assim como suas dinâmicas e práticas, é pré-estabelecido pelo livro didático e pelo Manual do Professor. Mesmo com certa liberdade pedagógica no ensino público, a prática docente encontra-se inevitavelmente conexa às formulações e conteúdos produzidos por autores e editoras. Na rede privada, demanda-se maior rigor no cumprimento do plano pedagógico estabelecido pelo material. Ainda, a elaboração de livros didáticos consiste em um lucrativo mercado no país, mas é permeada por incontáveis regulações, normas e obrigações conteudísticas estabelecidas por diretrizes federais determinadas pelo Ministério da Educação (MEC). Observa-se, portanto, a forte influência política, externa ao meio em questão.
Nesse contexto, deduz-se que a ação de um profissional qualificado – crítico e ético – bastaria para contornar o problema. Contudo, nesse ponto outro gargalo torna-se perceptível: a formação de professores, pedagogos, coordenadores e diretores. Não é novidade a progressiva deterioração do ensino superior tupiniquim. No setor privado, há um evidente comprometimento pedagógico derivado da péssima qualidade das milhares de Uniesquinas país afora, além da deficiente base educacional de seus egressos. Sanguessugas do dinheiro público pelo Prouni e pelo Fies, tais universidades são responsáveis pela institucionalização generalizada da incompetência diplomada, do analfabetismo funcional profissionalizado. São elas formadoras de indivíduos que, muitas vezes, mostram-se incapazes de compor com lógica e coerência um pequeno parágrafo, mas que mesmo assim podem exercer legalmente o ofício de educadores, médicos, engenheiros etc. Evidentemente há inúmeras exceções, das quais referencia-se a regra.
Rodrigo Constantino: Desgraça acadêmica: há método na loucura (31 de outubro de 2017)
Surge, então, o questionamento: há salvação pelas tradicionais instituições estaduais e federais? Antes fosse. As universidades públicas brasileiras há muito sofrem com o contínuo sucateamento, além de sucessivas – e corruptas – más gestões. Algumas delas, como a Uerj, estão a poucos passos de seu fim. Ironicamente, enquanto ainda respiram, catalisam a espiral de sua própria decadência, principalmente nos cursos de Ciências Humanas. Transformaram-se voluntariamente em espaços avessos à prática científica e ao diálogo social/mercadológico. Lá, o ingresso e a ascensão profissional são restritos à aprovação dos pequenos clubes corporativos e seus grandes caciques, que também detêm o controle do acesso aos recursos públicos de incentivo à pesquisa. Não há pluralidade de pensamento fora do espectro ideológico institucionalizado. Ideias divergentes e seus formuladores raramente são apresentados ou discutidos – quando não são perseguidos. Os espaços estudantis, assim como suas entidades, são controlados por partidos e movimentos com finalidades políticas específicas. Jovens líderes partidários recebem ordenados para permanecer o máximo de tempo possível em suas graduações, estendendo assim a influência e a cooptação política. Os futuros docentes são os atuais discentes. O câmpus constitui a única realidade aceitável para alunos e professores. Inexiste qualquer ponte entre o acadêmico e a realidade social do contribuinte que o sustenta. Mesmo assim, são eles os requisitados especialistas dos temas contemporâneos. Impressiona a propriedade que consideram ter ao esmiuçar questões sociais, políticas e culturais, já que o fazem sem nem sequer cogitar um breve abandono de suas confortáveis salas na universidade.
Nessas instituições, formam-se indivíduos incapazes de pensar fora do arcabouço ideológico predefinido. O “deve ser”, a utopia, domina o horizonte de qualquer produção científica. Perpetua-se assim um profundo ciclo de alienação acadêmica. Logo, fica clara a impossibilidade sistêmica de tais universidades (públicas ou privadas) de gerar intelectuais capazes de aplicar qualquer conceito ético no exercício de suas funções, pois suas atividades concorrem para uma finalidade específica.
Não obstante, a subversão da prática docente também pode ser compreendida como, muitas vezes, involuntária, sem intenção; afinal, o deturpado conteúdo a ser transmitido consiste na única e inconteste perspectiva apresentada ao longo da formação acadêmica, e que também é a única presente nos livros didáticos e acadêmicos. Não há diálogo, pois não há compreensão e empatia. Dessa maneira, qualquer objeção confrontativa somente gerará descrédito e posturas defensivas. Trocando em miúdos, a crítica – como apresentada acima – passa a ser compreendida pelo docente como uma ferramenta voltada àquilo que diz combater: a cooptação ideológica em sala de aula.
A filosofia é pedra angular do conhecimento humano. Mas o MEC se refere à disciplina como algo custoso e dispensável
O movimento Escola sem Partido surge como diagnóstico e reação a esse caricato processo. É uma iniciativa paliativa, descentralizada e que objetiva remediar alguns abusos mais dantescos, como levar alunos às greves da rede pública e avaliá-los de acordo com o comprometimento diário com a causa. É nítido, contudo, que o projeto não arranha a superfície, além de motivar algumas distorções radicalizadas, como a defesa pelo fim do ensino das Humanidades e a tentativa de tornar acrítico (?) o ensino de História e Geografia.
Fica evidente, por conseguinte, que o raso debate embriaga-se nas elocubrações das mesmas mazelas que gera. Esquizofrênicos decidindo em quem se deve aplicar antipsicóticos. Inacreditavelmente, a atual gestão do MEC, dando ouvidos ao reacionarismo bovino, concluiu com brilhantismo que é necessária a imediata exclusão, nos ensinos fundamental e médio, da disciplina de Filosofia. Em vez de tratar a infecção na perna, os burocratas optam pela amputação do membro.
Embora subestimada, a filosofia é pedra angular do conhecimento humano. Por meio de seu exercício, desenvolveu-se o método científico, a aritmética, geometria, a retórica, a psicanálise, a política, a físico-química e tantos outros segmentos imprescindíveis ao progresso civilizacional. Seu ensino, em teoria, tem como objetivo o desenvolvimento das faculdades lógicas, críticas, metodológicas, argumentativas e de abstração. Ironicamente, é a formação filosófica que torna o indivíduo imune à deturpação ideológica do conhecimento. Todavia, o MEC refere-se à disciplina como algo custoso e dispensável. Gradativamente, substitui-se formação por capacitação técnica. Materializa-se assim o homem-massa de Ortega y Gasset: vulgar, bestializado e egoísta. Paradoxalmente, é delegada a essa maioria vulgar a responsabilidade pelos rumos sociais. Desprovido de qualquer ferramenta reflexiva e alienado moralmente – virtudes indispensáveis, de acordo com Adams, Jefferson, Washington e Franklin, para a manutenção da liberdade e para a construção de um governo justo –, o brasileiro caminha a passos largos para a barbárie.
Por estas bandas, somente deposita fé na educação quem ainda não colocou os pés em uma sala de aula. Nesta terra de prostitutas apaixonadas e gigolôs ciumentos, há também o acadêmico que nega a ciência, o pedagogo que deseduca e a coletividade de egoísmos. O surpreendente tornou-se banal. O absurdo é o novo preto. Alexandre Frota ministro da Educação é notícia para mais um dia normal. Felicidade mesmo, Chico Buarque nos ensina, é ter uma passagem de volta marcada. De preferência, para Paris. Por aqui, não há otimismo que se sustente sem antidepressivos. Cadê meu Rivotril?
Deixe sua opinião