• Carregando...
 | Mandel Ngan/AFP
| Foto: Mandel Ngan/AFP

A revelação, na última terça-feira, de que o presidente Donald Trump ordenara ao conselho da Casa Branca que processasse Hillary Clinton e James Comey ilustra bem a fragilidade das normas políticas aparentemente inabaláveis na Era Trump.

A história gerou um novo nível de revolta e choque entre seus críticos, até os mais exaustos com os ataques semanais do presidente contra o Estado de Direito – principalmente os ex-integrantes do Departamento de Justiça, que reagiram com todas as variantes de “ele está de brincadeira”. Entretanto, outros alegam que a sugestão, derrubada pelo conselheiro da Casa Branca, Don McGahn, prova que o sistema está funcionando, e bem.

De fato, Trump estava falando muito a sério – e o caso revela como o aparato se fragilizou em menos de dois anos, desde que ele tomou posse.

A intenção do presidente aqui, indiscutivelmente putinesca, foi a de usar o sistema e o poder legal estendido do Executivo para prejudicar seus inimigos. E o que o impediu de levá-la adiante não foram as leis estabelecidas nos livros – as proteções legais da Rússia não são menos abrangentes ou generosas que as nossas, mas não impedem Vladimir Putin de exterminar seus oponentes políticos –, mas sim normas políticas compartilhadas desenvolvidas e estabilizadas ao longo do tempo.

Trump disparou críticas menos explícitas ao Judiciário, classificando os magistrados que foram contra suas decisões de “juízes do Obama”

Aparentemente, McGahn conseguiu impedir que Trump emitisse a ordem de processar seus oponentes políticos alegando que o plano era tão antiético em relação aos valores políticos norte-americanos que desencadearia um processo de impeachment certo (há de ter pena do conselheiro, primeiro tentando assimilar a ordem, e depois tentando explicar ao chefe, com a paciência de quem tem de educar um garotinho malcriado, o tamanho da encrenca que estava propondo).

McGahn está longe de ser um Lincoln, mas tem cultura política, conhecimento das leis norte-americanas e experiência suficiente para rechaçar a sugestão. A pergunta que não quer calar aqui é o que poderia ter acontecido – ou vai acontecer em um futuro próximo – se a ordem tivesse sido dada ao comparsa de Trump, Matt Whitaker, atualmente o procurador-geral interino, por intermédio de Pat Cipollone, que está chegando como o novo conselheiro da Casa Branca, muito mais inexperiente que McGahn. Afinal de contas, tanto Cipollone como Whitaker foram indicados basicamente graças à sua flexibilidade moral, qualidade que Trump sempre deixou bem claro ser essencial em seus advogados.

Espero e quero crer que a ordem do processo, sem que haja nem mesmo um indício de atividade criminosa, tenha gerado uma onda de demissões no Departamento de Justiça. O fato, porém, é que nem todo mundo poderia sair e, se o procurador-geral a tivesse exigido, o processo provavelmente teria sido instaurado.

É de imaginar que a ação judicial fosse suspensa antes de Hillary Clinton ser levada algemada – mas talvez não, dadas as doutrinas de deferência ao Executivo, que normalmente não dão muito espaço para o acusado questionar seu indiciamento, baseado na intenção imprópria. De qualquer forma, a simples instauração de um processo seria um golpe gravíssimo à democracia norte-americana.

Leia também: O modus operandi de Donald Trump (editorial de 18 de março de 2018)

Leia também: Trump não foi repudiado, mas sim recompensado (artigo de Daniel McCarthy, publicado em 11 de novembro de 2018)

Mais que isso: seria praticamente impensável antes de 2016. O princípio que diz que o presidente não pode simplesmente sair processando seus inimigos políticos faz parte do DNA da cultura política dos EUA, mas Trump é a força tóxica e negligente, totalmente indiferente à natureza dos laços que está rompendo.

E não é só o presidente; Whitaker, o procurador-geral interino, deixou clara a ameaça semelhante aos princípios legais mais básicos em sua rejeição descabida a “Marbury contra Madison” – base do poder de controle jurisdicional da Suprema Corte e, sem dúvida, a deliberação judicial mais importante e determinante já tomada –, que descreveu como “um dos piores vereditos na história da Suprema Corte”.

Mais recentemente, Trump disparou críticas menos explícitas ao Judiciário, classificando os magistrados que foram contra suas decisões de “juízes do Obama”, o que lhe rendeu, na quarta, uma carraspana de John Roberts: “Não temos juízes do Obama, do Trump, do Bush ou do Clinton. Um Judiciário independente é algo por que todos nós só temos a agradecer”.

O que torna as posições de Trump e Whitaker tão erradas e estapafúrdias? Surpreendentemente, é difícil dizer. De fato, em 1803, quando John Marshall emitiu a opinião, esta poderia ser vista como apropriação do poder por parte do tribunal, arrogando para si a última palavra para “dizer o que é a lei”. Mais de 200 anos depois, entretanto, o princípio parece estável e inatingível, a base de um sistema judiciário e da fidelidade à obediência das leis que fazem inveja ao resto do mundo.

Leia também: A nação de Trump: inconsequente, isolada e ridicularizada (artigo de Susan E. Rice, publicado em 3 de outubro de 2018)

Leia também: A estratégia pró-vida de Trump para abolir o aborto (artigo de Benedetta Frigerio, publicado em 5 de outubro de 2018)

Só que essa estabilidade, no fim das contas, se desenvolve sobre uma fundação composta de normas culturais políticas comuns, e não de leis. Especialmente nos dias de hoje, é totalmente possível que um procurador-geral, com uma marreta em mãos, de fato possa acabar com ela. Parece meio que uma piada de mau gosto – muito parecida com aquele anúncio que o então candidato Trump fez de que, se fosse eleito, Hillary Clinton “seria presa”. Pois agora a tal brincadeira se voltou contra nós. E, se não fosse a coincidência de ser McGahn, ela bem poderia correr esse risco.

A lição insana e aterradora que a ordem de processar Hillary Clinton e James Comey deixa não é a de que nossas normas legais podem suportar um déspota, mas sim a de que, em questão de meses, podemos nos ver rezando para que ainda tenham força para tal, e com poucos recursos se falharem. Serão necessários muitos anos para reparar os estragos causados à nossa cultura política de base e à determinação comum ao espectro político.

Harry Litman é ex-promotor público e ex-procurador-geral adjunto. É professor de Ciências Políticas na Universidade da Califórnia em San Diego e advoga na Constantine Cannon.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]