"Que alguém se torne o que se é, pressupõe que não suspeite nem de longe o que se é", assim Nietzsche escreveu em Ecce homo! Tornamo-nos algo em meio às vivências, em situações concretas do mundo e com os outros. Em vez de somente executar uma vida previamente concebida, por meio da instrumentalização de virtudes supostamente inatas sejam divinatórias, sejam naturalistas, ou mesmo entendendo que se pode perfeccioná-las ao longo da vida , trata-se de entender que a ênfase está mais na fluidez do "tornar-se" e menos na fixidez inatista do "o que se é". Isso implica assumir a tarefa de tornarmo-nos o que somos, mesmo que nem sequer se suspeite o que efetivamente somos. Certamente essa concepção é mais conflitiva, mas também é a que mais permite o genuíno exercício da liberdade.
Essa concepção significa, além disso, deslocar a compreensão inatista da virtude (arethê), ou excelência moral, situando-a antes no horizonte do constructo, que também não é mera determinação social, mas uma via de mão dupla entre o mundo no qual nos situamos e nossa ação sobre ele. Estamos sempre em uma situação concreta sobre a qual agimos! Não nos é lícita a inocência otimista da espera por situações ideais, e nem por ações supostamente virtuosas geralmente construídas em espaços sociais previamente sequestrados. Intensifico um pouco mais a complexidade do problema: além de tornar-se sem saber o que temos de nos tornar, pois não suspeitamos o que somos, agimos em situações que nem sequer podemos esquadrinhar de antemão, reconhecendo a incerteza das próprias ações.
Para lançar um pouco de luz sobre o problema, valho-me aqui do criativo termo alemão Spielraum, traduzindo-o por "espaço de atuação", e que Nietzsche já havia empregado para analisar questões diversas. Sempre estamos em uma situação concreta (Raum), de modo a saber mais ou menos as regras do jogo (Spiel). Assim, agimos em um espaço regulado, cuja ação ainda não está decidida em absoluto. Tomemos o exemplo de professores e estudantes universitários deliberando sobre avaliações. A universidade é um espaço determinado, cujas regras os envolvidos mais ou menos conhecem. Na apresentação da disciplina, nenhum aluno se espanta quando o professor fala sobre avaliação, pois todos já sabem em geral as regras daquele espaço. Os mecanismos avaliativos, porém, é que são sempre fluidos e rediscutíveis, de modo que a atuação avaliativa (Spiel) e o espaço universitário (Raum) são autorreferenciais. Aliás, processos avaliativos se alteram sempre que o espaço de atuação também se modifica sabemos que nem sempre o mesmo processo de avaliação tem êxito ou é "excelente" para toda e qualquer turma , portanto a ação nunca está decidida por definitivo, guardando seu horizonte de incerteza.
O agir virtuoso é uma via de mão dupla e autorreferencial em relação ao contexto. Não há relativismos aqui, pois sempre estamos em situações concretas; e não há determinismos, pois o agir nunca está decidido de uma vez por todas; a excelência da ação, portanto, não sugere quaisquer inatismos sob o risco de violência em algumas situações , mas exercício crítico em relação ao espaço de atuação e práxis autocrítica em relação à própria atuação. À tarefa de "tornar-se", não sabemos o que somos, nem agimos por meio de cartilhas, sem horizontes rígidos e sem sentidos prefixados. Para essa tarefa, vale a anotação de Nietzsche: "Quais se mostrarão aí os mais fortes? Os mais comedidos: aqueles que não necessitam de quaisquer artigos de fé extremados".
Jorge Luiz Viesenteiner, doutor em Filosofia pela Unicamp, é professor na Universidade Federal do Espírito Santo e autor, dentre outros, de Nietzsche e a vivência de tornar-se o que se é.
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