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O termo “intelectual” não me convence bem, na medida em que parece conotar uma separação das pessoas comuns, as quais em nenhum momento teriam sido muito letradas; mas tem sido usado desde o surgimento do termo, no século 19. Desde então, o termo foi aplicado em muitos contextos diferentes: “traição dos intelectuais”, “intelectuais orgânicos”, “intelectuais emergentes”, “intelectuais de grife” e assim por diante. Mas eles existem realmente?
Um intelectual parece ser aquele que se move melhor do que outras pessoas no nível conceitual. Mas, nesse sentido, quem tenta saber algo mais do que normalmente se sabe à primeira vista é tido como um intelectual. Qualquer cientista e qualquer artista seria, então, um intelectual. E qualquer outro, desde que se disponha a avançar um pouco mais no conhecimento das coisas.
Até pouco tempo atrás, falava-se em maîtres à penser, “mestres do pensamento”, isto é, pessoas que, colocadas sobre um pedestal simbólico, pensaram ter encontrado as tendências presentes na história, interpretaram-nas e disponibilizaram-nas ao grande público. Não é preciso ir muito longe. Nos anos 60 e 70, pessoas ouviam o que Sartre tinha a dizer: fomos “condenados a ser livres”, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas pessoas tinham de simpatizar com o maoísmo ou tiveram de ouvir, num sentido muito sutil, que “a morte do homem” de Foucault era verdade, porque Deus já havia morrido desde Nietzsche ou porque Lévi-Strauss disse que o ser humano era “uma coisa entre coisas”.
Hoje, salvo alguns dinossauros aqui ou ali na opinião pública, parece que não sobrou muito disso, exceto no meio acadêmico, que não está muito ligado à vida das pessoas comuns. A cultura em que vivemos, seja ela pós-moderna ou o que se quiser, é a da dispersão: qualquer indivíduo, do Twitter, pode pontificar sobre tudo, mesmo desde a mais supina ignorância. E, o que é mais curioso, ter milhões de likes de sujeitos tão ou mais estultificados como ele. É um cego a guiar uma legião de cegos.
Não temos a intenção de desqualificar “o intelectual”, até porque sou reputado como um pelos meus pares. Pelo contrário, gostaria que as pessoas comuns começassem, da melhor maneira possível, a compreender – intelectualmente – melhor o mundo e, para isso, não nos parece necessário ou mesmo conveniente rotular qualquer uma dessas pessoas comuns com o adjetivo “intelectual”.
Assusta-me que alguns dos chamados intelectuais, então e agora, se atrevam a olhar para a realidade e dizer: “é assim que as coisas são. Isso é o que está acontecendo e o que vai acontecer”. Citamos, como exemplo, Harari com sua trilogia em que, entre outros delírios, profetiza que seremos deuses imortais em décadas, o que soa como uma piada em tempos de pandemia.
Contra clichês e besteiras, você tem de ser politicamente incorreto, não da forma contundente, mas com agudeza de arte e engenhosidade. A inteligência – e também o coração – é o que nos torna humanos e cultivar o que é genuinamente humano é um bem, bem como um prazer específico. Mas não é necessário fazermos disso uma profissão, precisamente porque é comum, em maior ou menor grau, a todos os homens e mulheres. Há uma alegria especial – o espanto ontológico aristotélico – em entender como as coisas são e funcionam, e esse deve ser o papel da educação.
Felizmente, a educação está agora disponível para todos, mas, infelizmente, nem sempre como uma abordagem de “conhecer uns aos outros e ao mundo”. Quantos alunos e alunas chegam ao nível universitário sem quase terem lido nada de muito valioso que a literatura humana nos legou?
Outro dia desses, alguém me interpelou sobre a necessidade não só de intelectuais, mas de “intelectuais cristãos”. Aqui, o problema toma outro rumo. A questão do intelectual surge, pois, num determinado momento, este em que, no Ocidente, há um descontentamento na dimensão religiosa do ser humano.
Mas, como nenhuma época pode ser pintada de uma só cor, há pessoas, de qualquer condição, que acreditam em Cristo não como adesão a um programa, mas como relação de amor verdadeiro. Dessas pessoas, a maioria não é muito atrapalhada no nível conceitual, pois tem o suficiente para que cada dia tenha o seu cuidado. Outros, além destas ansiedades do cotidiano, reviram as coisas na cabeça, tentando entender mais. Eles são chamados de intelectuais, mas não há necessidade de fazer isso. Se não é necessário chamá-los de “intelectuais”, menos ainda devemos chamá-los de “intelectuais cristãos”.
O essencial é que sejam, em sua práxis vital, imitadores de Cristo. Em quê? No amor pelos outros, no respeito pela liberdade, na capacidade de misericórdia e no cumprimento da justiça. Tudo isso pode ser expresso cultivando morangos, pintando um quadro, vendendo um carro, varrendo o chão, servindo uma cerveja ou escrevendo um livro. Nesse ponto, todas as profissões lícitas são pautas aptas a serem santificadas, a si mesmo e aos outros. Na Primeira Carta de São Pedro, lemos: “esteja pronto para dar uma razão de sua esperança a todos os que a pedirem”. É dirigido a todos, não apenas “aos intelectuais”. E as “razões” podem ser de tipos muito diferentes: razões que são obras (“obras são amores e não boas razões”), gestos, detalhes, explicações ou um tratado de 800 páginas. Em suma, razões que passam por ações.
É verdade que existem diferenças na qualidade das ações. Uma música da Anitta está muitíssimo longe de um jazz de Billie Holiday que, por sua vez, deve ceder lugar quando Bach, Beethoven ou Mozart tocam. Algo semelhante acontece no aprofundamento da fé, mas com esta exceção: quando há verdadeiro amor a Deus, isso vale muito, mais muito mais do que todos os tratados científicos e filosóficos catalogados na famosa Bodleian, a quase milenar biblioteca de Oxford.
Não posso dizer se mais ou menos “intelectuais cristãos” são necessários, mas estou convicto de que são necessárias mais pessoas com um tipo de fé que seja como a do Evangelho, a fé do fermento que faz a massa crescer. Contudo, hoje, as religiões cristãs, sobretudo a católica, não têm uma rede de escolas, universidades, rádios, televisões, editoras, associações, organizações, institutos, congregações para não depender de “outros” darem a palavra ou não? Estes enormes recursos não estão realmente sendo usados de uma maneira ideal, a ponto de permitir que a “guerra cultural” seja bem travada?
Sem dúvida, é uma pertinente hesitação que deve contar com outras linhas para o desenvolvimento de uma perspectiva de resposta. Por ora, podemos apenas afirmar que é do amor de cada cristão pela cultura que podem surgir formas de contra-argumentação num tom crítico, cordial e adequado à nossa época que, como qualquer outra, é formada por sombras e luzes.
Sabemos que muitas dessas universidades, rádios, televisões, editoras, associações, organizações, institutos, congregações fizeram e fazem muito para tornar conhecido o fecundo valor do cristianismo junto à civilização ocidental. Mas resta saber se, hoje, tais entes realmente aprofundam o humano ou se mantêm no nível epidérmico. Ademais, convém recordar que sempre se esteve, essencialmente, no seio de uma “guerra cultural”, porque, afinal, o Evangelho sempre foi uma “pedra de tropeço”.
Gramsci disse que a “batalha pela hegemonia cultural” – que, para ele, era de cunho materialista – era uma luta de posições, casamatas e trincheiras. Se não houver escolha, a não ser dar uma definição de intelectual, seja cristão ou de qualquer outra denominação, eu sugeriria que o intelectual é aquele que deixa sua própria trincheira e adentra na terra de ninguém da cultura tanto quanto possível, mesmo correndo o risco de receber uma bala perdida e sempre por conta própria.
André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é juiz de Direito, professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).