A Constituição Federal Brasileira é tecnicamente prolixa e muitas vezes trata de assuntos desnecessários. Porém, sobre o seguinte tema, a Constituição é clara: ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) cabe o julgamento dos governadores de estado por crimes comuns. Em crimes de responsabilidade, a competência cabe às respectivas Assembleias Legislativas – informativo 793 do Supremo Tribunal Federal (STF). Em nenhum dos casos, cabe ao STF a competência originária.
Longe de perguntar quem vigia os vigilantes, pois além de clichê, a frase se tornou obsoleta no Brasil. Nem mesmo os vigilantes da Constituição questionaram a prerrogativa de foro quando mantiveram a decisão do ministro Alexandre de Moraes em plenário. O ministro, em decisão monocrática, decidiu pelo afastamento do governador Ibaneis Rocha por um longo período de 90 dias sem sequer dar a possibilidade de resposta à parte interessada ou ao Ministério Público, uma medida extrema e sem precedentes.
O afã autoritário para demonstrar uma resposta rápida ao público pode resultar – e certamente vai – no mesmo fim que teve a Lava Jato e várias outras operações brasileiras.
A despeito da barbárie que houve no dia 8 de janeiro em Brasília, o ditame basilar de uma democracia madura é não responder olho por olho. No episódio do Capitólio, por exemplo, as medidas que levaram à prisão de mais de 500 pessoas se deram depois de seis meses. O mesmo se deu aos possíveis envolvidos que faziam parte da segurança do Capitólio. Todos investigados para, então, terem as medidas contra eles implementadas, com respeito ao devido processo legal e ao direito de defesa.
O governador teve mais de 800 mil votos e foi (re)eleito democraticamente. É o chefe de poder de um ente federativo e, mesmo com altos indícios de negligência sobre a situação, merece ter o devido processo legal assegurado. Não apenas ele como todos os demais detidos em Brasília. O afã autoritário para demonstrar uma resposta rápida ao público pode resultar – e certamente vai – no mesmo fim que teve a Lava Jato e várias outras operações brasileiras. Ao final, são revertidas por diversos erros formais, em geral, em tema de competência originária.
Sobre a competência originária do STJ para avaliar qualquer ato omissivo do governador Ibaneis, o próprio STF em 2018, Ação Penal 937, já havia sedimentado entendimento de que o foro por prerrogativa de função se restringe às hipóteses de crimes praticados no exercício da função ou em razão dela. Esse seria perfeitamente o caso sobre o ocorrido no Distrito Federal.
Para piorar, foram todas as justificativas levantadas de que caberia ao STF a continuidade do julgamento envolvendo o governador, se baseando no Regimento Interno da Corte. Ora, regimento algum, quando confrontado com a Constituição, se sobrepõe a esta. Tal posicionamento é conhecimento básico entre os mais debutantes no mundo do direito.
Outro aspecto que vale destacar sobre todo o ocorrido é que, apesar da injustificável ausência do secretário de Segurança Pública Anderson Torres no dia do evento, o ministro da Justiça e Segurança Pública estava presente em Brasília. Não apenas isso. Havia no dia anterior autorizado a atuação da Força Nacional de Segurança Pública, por meio da Portaria 272/2023.
Todo o planejamento do uso das Forças Nacionais de Segurança Pública é de responsabilidade do Ministério da Justiça, e, em última análise, do ministro Flávio Dino, o qual, no dia dos acontecimentos, estava na capital federal e, portanto, também deve esclarecimentos sobre sua omissão. Inclusive, a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) informou com dias de antecedência, tanto o governador do DF, quanto o ministro, sobre os riscos das manifestações do dia 8 de janeiro. Porém, até o momento, não há qualquer medida direcionada ao ministro em termos de responsabilização.
Não cabe às instituições brasileiras promover uma caça às bruxas de forma seletiva. Muito menos cabe a elas por a termo todo o avanço civilizatório trazido em tema de processo legal pela Constituição brasileira. Bem ou mal, os processos devem ser seguidos contra todos os envolvidos no lamentável episódio em Brasília. Não deve haver espaço para que haja outra operação que resulte em nulidade e impunidade por erros formais oriundos do afã populista do punitivismo.
Izabela Patriota é advogada formada pela UFRN e doutoranda em Direito pela USP. Também é diretora de Relações Internacionais no LOLA Brasil.
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