Nos últimos anos, infiltrou-se progressivamente no Judiciário a idéia que prega a maior intervenção do juiz na correção de mazelas sociais, econômicas e políticas: o "ativismo judicial". Seu pressuposto inconfesso reside na noção de que o Direito, por meio de seu oráculo, o Juiz, reencarnação do "rei filósofo", pode tudo: corrigir desigualdades sociais, eliminar vícios morais e até mesmo "impor" afeto nas relações familiares (evidentemente, sob a forma de um sucedâneo universal, que é a condenação em dinheiro pela ausência de amor). Anulam-se as distinções entre direito, moral, política e economia, em prol do império do Direito.
O ativismo ou voluntarismo aparece dissimulado sob a forma da aplicação de princípios e de lugares-comuns argumentativos (os "topoi" dos gregos e "loci" dos romanos). Na primeira categoria, assumem especial importância: proporcionalidade, razoabilidade, devido processo legal material, abuso de direito, função social, boa-fé e equilíbrio contratual. Já os lugares-comuns, especialmente o da "hipossuficiência" (do consumidor, do trabalhador etc.), são adotados para nortear a interpretação das leis.
O problema não está tanto no reconhecimento e aplicação desses princípios e lugares, mas na absurda freqüência com que são invocados e utilizados para pôr de lado a aplicação de regras jurídicas vigentes: a razoabilidade é utilizada sem razão, e, assim, ao invés de ser um instrumento para coibir abusos dos demais Poderes, passa a encobrir abusos do Poder Judiciário; a proporcionalidade é adotada de forma desproporcional. Com isso, teorias, doutrinas e princípios que são usados com bastante cautela nos sistemas jurídicos de onde são originários, transformam-se em moeda-corrente no Brasil, contribuindo para aumentar o estado de insegurança jurídica. No fundo, "boa-fé", "razoabilidade", "proporcionalidade", pela sua vagueza, tornaram-se massa de moldar nas mãos do Juiz, palavras mágicas, cuja mera invocação supre a necessidade de argumentar e de embasar juridicamente as decisões. Ou seja, palavras que acobertam o voluntarismo. O desvio, pois, reside no uso desmedido, quer dizer, no abuso.
Sem dúvida alguma, cabe ao Estado Social de Direito desenvolver políticas voltadas ao bem-estar das camadas da população mais carentes. Sucede que o Judiciário não conta com os instrumentos hábeis a essa atuação, não está aparelhado para, na decisão de casos individuais, ponderar, em termos macro, os prós e contras de seus julgamentos, fazer uma análise das conseqüências de suas posições. A intervenção orientada por uma ética da convicção que não caminha de par com uma ética da responsabilidade leva a desastres, a resultados imprevistos (não necessariamente imprevisíveis) e indesejáveis. Quando, por exemplo, no processo de retomada de um imóvel financiado, por inadimplemento do mutuário, o Juiz protege este, desconsiderando tanto a letra do contrato como a da lei, o que faz é ato de caridade à custa alheia (do credor), não de justiça ou mesmo de eqüidade. E essa caridade individual, multiplicada em milhares de processos, acaba por, paradoxalmente, gerar uma injustiça social. Como?! Sim, a maior dificuldade em fazer cumprir contratos tende a aumentar o custo desses contratos, e, na pior das hipóteses, a inibir sua formação. E quem sofre com isso, em última análise, são justamente as pessoas mais necessitadas de crédito.
Essa atuação do Judiciário não é apenas disfuncional: é também ilegítima, antidemocrática e contrária à tripartição dos poderes. Basta ter em mente que, no Brasil, o acesso à magistratura se dá por meio de concurso público ou por nomeação do Poder Executivo (o malsinado quinto constitucional). Ora, nenhum desses critérios legitima o Juiz a se arrogar à condição de livre criador de normas jurídicas: o primeiro depende do domínio técnico da dogmática, demonstrado em provas e exames; o segundo, da influência política, do apadrinhamento. Quanto ao Legislativo, por pior que seja sua composição, ao final de contas, ela resulta de eleição popular. Não há outro remédio senão, a cada eleição, tentar-se acertar na escolha dos legisladores. É um contínuo processo de tentativa e erro, de aprendizagem democrática. O que não se pode é colocá-lo de lado e substituí-lo pela atuação de Juízes supostamente detentores de um saber especial no trato da coisa pública.
Leonardo Sperb de Paola é advogado e professor de Direito da FAE Business School.
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