Raramente a literatura e a história do Brasil nos oferecem textos com memórias e autobiografias que carregam ao mesmo tempo informação, história, sensibilidade pessoal, análise política. Jango e eu – memórias de um exílio sem volta, por João Vicente Goulart, carrega todas estas qualidades, além de uma beleza estética de um texto que se lê com prazer.
O livro passa com muita sensibilidade a história da relação entre pai e filho entre os 7 e os 29 anos do autor. Ao longo das 350 páginas percebe-se uma relação de profundo amor filial e paternal também; além disso, uma imensa cumplicidade positiva e respeitosa entre os dois.
Mas o pai não é qualquer um: é um ex-presidente da República, entre os dois ou três mais marcantes da história do Brasil; o que melhor representou, entre todos, o compromisso com as necessárias e adiadas reformas sociais dentro da democracia. Nenhum outro presidente levou tão a sério o compromisso com a democracia, mesmo no momento em que seu poder foi ameaçado e ele foi destituído sem tentar usar o poder militar que ainda estava sob seu comando.
Ao longo de todo o seu exílio, Jango manteve-se fiel ao compromisso com a integridade nacional
O livro de João Vicente começa e termina de maneira dramática: ao ver, com os olhos de 7 anos de idade, sua mãe arrumando as malas, no palácio presidencial da Granja do Torto, para partir para o exílio, sem saber como estava seu pai, e termina no cemitério de São Borja, abraçado ao caixão de Jango.
Entre esses dois momentos, primeiro com os olhos da criança que o texto representa muito bem, depois adolescente e adulto jovem, ele descreve o dia a dia da família, nos primeiros dias no Uruguai, sem o pai, que ainda estava no Brasil. Depois, pai, mãe e irmão recebidos com carinho por amigos, as mudanças de endereços, as viagens, os encontros, as dúvidas, saudades, frustrações, discordâncias, ameaças e também o sucesso empresarial do ex-presidente, enfrentando tantas dificuldades em território estrangeiro.
Ao longo desse tempo, a figura de Jango sai consolidada, como democrata, como companheiro solidário dos combatentes exilados, como patriota nacionalista, como um político defensor de se fazer um Brasil soberano diante das nações e justo com o seu povo. João Vicente mostra, sobretudo, um democrata sensível que não quis usar a força para resistir aos golpistas, por não querer ser responsável pela divisão do país que provavelmente ocorreria, naqueles tempos de Guerra Fria. Ao longo de todo o seu exílio, o ex-presidente manteve-se fiel a esse sentimento pacifista, esse compromisso com a integridade nacional, esse desapego ao poder pessoal, em nome da unidade nacional.
Isso não quer dizer que ele tenha ficado alheio ao Brasil. O livro mostra que, dentro dos limites impostos pelo estatuto do exilado, ele participou das conversas e articulações na defesa da restauração da democracia. Para isso, foi capaz de gestos radicais como receber Carlos Lacerda, na tentativa de formar uma frente ampla democrática. Lacerda havia sido seu maior adversário, o principal líder civil do golpe, culpado por sua destituição da Presidência, sua perseguição, seu exílio com a família. Mesmo assim, enfrentando a intolerância do resto da comunidade exilada e das forças democráticas, em nome do Brasil Jango recebeu Lacerda em seu apartamento em Montevidéu e fez a foto que o livro reproduz. Para mim, essa foto é um recado de Jango para todos nós que hoje fazemos política em um país sectarizado, sem pontes, só paredes.
A foto dos dois é um símbolo de que, 50 anos depois, vamos precisar de diálogo em nome de barrar uma “guerra civil”, de consolidar a democracia e de fazer as reformas necessárias, tanto aquelas que Jango defendia quanto as outras que, meio século depois, nos são exigidas.
Essa necessidade, tantos anos depois, mostra como o livro de João Vicente, que é agradável e estimulante como leitura e como descrição histórica, é também um alerta para os que estão hoje na política: a necessidade do diálogo com princípios e tolerância, com compromissos nacionais, não corporativos; com visão do longo prazo, não apenas do imediato, percebendo a necessidade de reformas, as de Jango e as novas, sem abrir mão do compromisso com os trabalhadores e todos os brasileiros, desta e das novas gerações. Precisamos de um diálogo em que cada um seja primeiro brasileiro, democrata e reformista; e político apenas por circunstância, como o Jango que revive neste livro: um brasileiro, sobretudo.
Para todos esses, o livro de João Vicente é um marco, um chamado, uma memória oportuna de se relembrar.
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