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Resenha

Sociólogo francês prevê a derrota do Ocidente, mas carece de rigor científico

Emmanuel Todd e seu livro "A Derrota do Ocidente", ainda sem tradução para o português. (Foto: Gallimard/Divulgação)

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Emmanuel Todd é um historiador, antropólogo e sociólogo francês de 72 anos, famoso por ter supostamente “previsto” em 1976, quando tinha 25 anos, a queda do império soviético. As aspas se explicam porque prever não é apenas antever o que vai acontecer, mas identificar os motivos pelos quais isso vai acontecer. A especialização de Todd é a demografia e sua “previsão” apontava causas demográficas para o fim da União Soviética. Não me parece, porém, que haja consenso de que foram essas precisamente as razões da ruína do regime soviético. Alguns diriam que a debilidade econômica e o peso financeiro e social imposto pela corrida espacial e armamentista com os EUA foram mais determinantes. Porém, como fica evidente neste La Défaite de l´Occident [A derrota do Ocidente] (Gallimard, 2024), Todd analisa eventos históricos em termos essencialmente morais e usa dados demográficos como sinais de fortalecimento ou decaimento moral da Nações.

Apesar do título, o livro em questão tem a guerra da Ucrânia como tema principal e faz uma previsão, a saber, que a Rússia ganhará essa guerra num prazo de cinco anos, ainda que Putin tenha que utilizar armas nucleares táticas. Isso porque, essencialmente, segundo o autor, a Ucrânia é uma não-Nação, um país artificialmente construído, profundamente dividido e enfraquecido com a debandada de suas elites russófonas; e o Ocidente, seu aliado, é uma zona política em acelerada decadência social, econômica e moral, enquanto a Rússia, ao contrário do que se crê no Ocidente, é uma Nação que, além de economicamente resiliente, foi moralmente fortalecida durante a era Putin. Trata-se de um verdadeiro Estado-Nação – que ele define assim: “uma Nação é um povo conscientizado por uma crença coletiva e uma elite que o dirige em função dela” (p. 86, a paginação é a da edição eletrônica a que tive acesso e todas as traduções do original francês são minhas) – contra um Ocidente que atingiu o que ele chama de “estágio zero” de religiosidade e, consequentemente, moralidade, mergulhado no niilismo característico desse estágio. Para Todd, uma crença e a moral que ela carrega são vitais para se manter em pé uma Nação; e decadência, para ele, mais do que debilidade econômica e instabilidade social, é fundamentalmente corrosão moral, que, no caso do Ocidente, ou assim ele crê, está associada ao enfraquecimento e eventual abandono dos padrões éticos protestantes que, como discípulo de Weber, ele acredita terem sido essenciais para a construção do Ocidente e sua pujança econômica durante o período liberal, principalmente pela alfabetização generalizada que proporcionou em função da necessidade de leitura das escrituras bíblicas agora acessíveis em língua vernácula.

Todd elege como marcador do momento em que a religiosidade atinge nível zero a legalização do casamento gay

O Ocidente, para Todd, inclui principalmente EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Japão, os grandes países capitalistas ricos, secundados pela resto da Europa Ocidental, Canadá, Coreia do Sul e Austrália. Os EUA, Inglaterra, Escócia, Alemanha e países escandinavos são, claro, todos protestantes. Todd identifica três fases de decadência dos padrões éticos de dedicação ao trabalho, frugalidade e honestidade característicos do protestantismo tradicional (que não inclui, ele afirma, o evangelismo pentecostal, segundo ele uma heresia protestante), que são: protestantismo ativo, quando as pessoas realmente possuem crenças religiosas e obedecem às suas práticas; protestantismo zumbi, quando embora a crença já não exista, as práticas se mantêm; e protestantismo zero, quando crenças e práticas associadas a elas já desapareceram completamente. Os termos são dele. A fase final, em que a espinha dorsal das Nações protestantes já ruiu, está para Todd associada ao surgimento do “neoliberalismo”, como usualmente se denomina o conjunto de medidas liberalizantes da economia típicas da Reaganomics e do thatcherismo, como não-controle de preços, desregulamentação do mercado de capitais, queda de barreiras comerciais, privatização e austeridade. Em suma, diminuição da presença do Estado na economia.

Ele traça o seguinte paralelo entre liberalismo e “neoliberalismo” no caso inglês (p. 107): “O liberalismo clássico [...] coexistia com um protestantismo ativo que sustentava a sociedade e dotava o britânico de base de um superego (o homem, corrompido pelo pecado original, é mau, em geral e sexualmente) e de um ideal de ego (a redenção, a salvação etc.). Ele acompanhou a revolução industrial, esse crescimento maciço da produção de coisas por engenheiros, técnicos e operários, qualificados ou não. O neoliberalismo, por seu lado, emancipou as finanças e procedeu à destruição do aparelho produtivo. Sobre seu mercado puro e perfeito agitam-se homens sem moralidade, simplesmente cúpidos. Sucedendo o protestantismo ativo do primeiro liberalismo e o protestantismo zumbi do Welfare State, o homem ideal do neoliberalismo tatcheriano é um protestante zero”.

Todd elege como marcador do momento em que a religiosidade atinge nível zero a legalização do casamento gay. Embora haja, para ele, outros marcadores de decadência religiosa, como o crescimento da prática de incinerações de cadáveres, a queda do número de batizados, a queda da expectativa de vida e o aumento da mortalidade infantil, o “casamento para todos” marca o momento mesmo de chegada ao ponto zero. A legalização do casamento gay em quase todo o Ocidente se deu majoritariamente nos primeiros anos do atual século. Por isso, ele diz: (p. 78): “pode-se definir os anos 2000 como os anos do desaparecimento efetivo do Cristianismo no Ocidente, de um modo preciso e absoluto”. A completa dissolução de crenças e práticas religiosas no protestantismo zero faz surgir, segundo Todd, o niilismo, que ele caracteriza como a tendência a afirmar o falso. Diz ele: “O niilismo nega a realidade e a verdade, ele é um culto prestado à mentira” (p. 169). Ele vê a pauta woke, praticamente hegemônica no Ocidente, como sinal desse niilismo, em particular a chamada “ideologia de gênero”, que separa gênero de sexo biológico e permite com que uma pessoa “mude” de sexo por mera declaração.

Qualquer pessoa que não estava em estado de coma entre 2019 e 2021 entende as quedas das curvas no gráfico: pandemia de COVID-19, mas Todd menciona a pandemia apenas ligeiramente em seus comentários

Em algumas entrevistas que vi dele à televisão francesa, Todd se define como “esquerdista conservador”, que quer dizer, acho, esquerdista tradicional que não subscreve a pauta woke. Eu fico imaginando como a esquerda mundial hoje, decididamente não conservadora, contaminada pelo wokismo, vai conciliar seu prazer em ver anunciada a ruína do Ocidente com os motivos que Todd apresenta para isso: falta de religião. Seria o fortalecimento de instituições conservadores (até mesmo, Ó Deus, de “extrema-direita”) como a família tradicional e a religião a saída para o Ocidente? Eu acredito que Todd favorece outra solução, talvez um modelo aparentado ao russo, um Estado forte (que ele chama de “democracia autoritária”) de tendência igualitária em aliança estreita com uma religião de Estado (e nós sabemos quão íntimos são os laços de Putin com a Igreja Ortodoxa Russa), lastreado na instituição familiar comunitária – que, segundo Todd favorece regimes políticos autoritários – e suficientemente desenvolvido econômica e culturalmente para sustentar uma grande classe média estabilizadora. Uma verdadeira Nação, no entendimento de Todd.

Para ele, vale a fórmula: decadência = corrosão da base moral religiosa e eventual niilismo + “neoliberalismo”, que é uma economia sem ética. Todd não se deixa impressionar pelo PIB declarado dos países ocidentais, uma vez que ele não crê que esse índice revele verdadeira riqueza. Ele chega a calcular o que chama de PIR, produto interno real ou realista, dos EUA, encontrando valor muito mais baixo do que o do PIB. O PIR leva em consideração apenas a riqueza do “verdadeiro” trabalho, desconsiderando “meros” multiplicadores de capital. O PIR está mais bem alinhado aos marcadores demográficos que ele gosta, como o cuidado para com crianças (e aqui o importante é a taxa de mortalidade infantil e o tamanho dos neonatos), os cidadãos em geral (expectativa de vida) e os mortos (respeito aos tradicionais ritos fúnebres). Para demonstrar a “pobreza” do Ocidente, Todd mostra um gráfico comparativo de expectativa de vida no Ocidente e na China desde 1960 até 2021 mais ou menos (p. 102). O que se vê é um crescimento uniforme da expectativa de vida no Ocidente de 1960 até 2019, de perto de 70 para mais de 80 anos, e uma queda acentuada de 2019 a 2020, mais ou menos, sendo a queda americana maior. A China aparece com expectativa de 65 anos em 1981 e cresce, sem decaimento, até a expectativa de 76 anos em 2021, ultrapassando os EUA perto de 2020. Todd não faz qualquer menção a esse gráfico ali onde ele é colocado no livro e apenas 20 páginas depois se refere a ele. Qualquer pessoa que não estava em estado de coma entre 2019 e 2021 entende as quedas das curvas no gráfico: pandemia de COVID-19, mas Todd menciona a pandemia apenas ligeiramente em seus comentários. Isso me parece pura manipulação retórica, mas Todd evidentemente não considera nem a retórica, nem a explícita tomada de lado como indesejáveis num trabalho acadêmico. Na verdade, o que mais chama a atenção nesse gráfico é praticamente nenhuma queda de expectativa de vida na China devida à pandemia. Como esses, Todd oferece muitos outros dados ao longo do livro, mas não diz de onde eles vêm nem o quanto são confiáveis.

Enfim, Todd não é um analista isento, ele tem lado. Sua admiração por Putin é evidente e ele chega mesmo a rir de alguns chistes do ditador russo sobre o Ocidente. Um deles, que se os EUA pedirem para os líderes europeus se enforcarem, eles concordarão, mas exigirão que a corda seja europeia. Os EUA recusariam e os europeus se enforcariam assim mesmo. O capítulo sobre a decadência do Reino Unido tem por subtítulo “Croule Britania” (Desmorone, Britânia), um trocadilho bem pouco sutil com o famoso hino Rule Britannia (Comande, Britânia). Ao analisar dados de mortalidade infantil na Rússia, Todd afirma que a queda detectada na era Putin denota elevação moral do regime e ausência de corrupção. Pois, ele argumenta, o cuidado com os mais vulneráveis é inconsistente com degradação moral. Que Putin seja um assassino que elimina adversários políticos e pessoais nos moldes de um César Bórgia não lhe parece indicar o contrário.

Devemos ler esse livro mais como as reflexões de um homem inteligente sobre temas candentes do presente, levando em consideração as suas muito claras simpatias e antipatias político-ideológicas, do que como uma obra científica

Alguns dos seus argumentos tangem a psicanálise. Se a Ucrânia tivesse mesmo querido se separar de vez da Rússia, ele afirma, ela teria voluntariamente aberto mão há tempos de regiões majoritariamente habitadas por russos, como Crimeia e Donbass. Que não o tenha feito mostra, ele argumenta, que a Ucrânia não deseja se separar da Rússia. E essa não é a única pretensa “sacada” psicanalítica na obra. Indagando-se o motivo de alguns países europeus se mostrarem tão pró-Alemanha, o país que os invadiu e dominou há menos de um século, e tão anti-Rússia, o país que os libertou do nazismo, Todd aventa a hipótese de que agem em gratidão pela Alemanha nazista ter “resolvido” o “problema judaico” deles. Evidentemente, como ele mesmo insinua, ele está ironizando e provocando, não expressando opiniões próprias ou fazendo uma análise séria dos motivos da suposta ingratidão para com os russos.

Essas considerações me levam a uma pequena digressão epistemológica final.

Explicações científicas são narrativas que buscam identificar as causas de fatos ou fenômenos observados contra o pano de fundo de teorias admitidas. Isso vale para quaisquer ciências, naturais ou sociais. Mas há duas importantes diferenças entre elas. Uma, as ciências naturais concordam quase sempre sobre quais são as teorias admitidas; as sociais, raramente. Há uma grande variedade de teorias concorrentes e inconciliáveis que nas ciências sociais disputam a preferência do cientista, que frequentemente elege a sua mais por afinidade ideológica do que por índice de acerto da teoria. Duas, as explicações das ciências naturais fazem previsões sobre o futuro que, se acertadas, validam as explicações, ao menos provisoriamente, e se erradas impõem revisões às teorias que as fundamentam. As das ciências sociais quase nunca se aventuram pelo porvir, elas são muito melhores em “prever” o passado. Quando excepcionalmente se dispõem a dizer o que o futuro nos reserva (como Marx, que previu a necessária superação do capitalismo pelo socialismo e, por fim, o comunismo) e erram (como Marx errou), em vez de corrigir a teoria que embasa a previsão, como nas ciências naturais, preferem convenientemente jogar a previsão para debaixo do tapete como um pecadilho sem consequências.

O livro de Emmanuel Todd faz muitas afirmações e previsões surpreendentes e o leitor deve estar preparado para fazer a pergunta: como você sabe disso? E cabe a ele, leitor, decidir se aceita ou não as explicações que o autor oferece. Uma delas, como já dito, é a explicação demográfica. Por exemplo, todos esperavam que a Rússia vencesse essa guerra em semanas, dado o seu poderio militar. Mas Todd nos diz que, devido ao seu déficit populacional, a Rússia preferiu mobilizar inicialmente poucos soldados, não mais do que 100.000, e utilizar grupos mercenários como o Grupo Wagner. Nós também fomos levados a crer, diz Todd, que a Rússia tem pretensões imperiais de reconstituir o espaço soviético. Novamente, segundo Todd, Putin não tem isso em mente porque sabe que não tem povo suficiente para tanto. Logo no começo do livro, ele diz (p.8): “Muito vasta para uma população decrescente, ela [a Rússia] seria incapaz de tomar controle do planeta, e nem deseja isso; ela é uma potência normal cuja evolução não tem nada de misterioso. Nenhuma crise russa é capaz de desestabilizar o equilíbrio mundial. Contrariamente, é uma crise ocidental, e mais especificamente americana, terminal, que põe em perigo o equilíbrio do planeta. Suas ondas mais periféricas foram quebrar num núcleo de resistência russa, um Estado-nação clássico e conservador”. Todd, corajosamente, faz previsões. Devemos também cobrá-lo por elas em tempo oportuno. Mas não basta que a Rússia vença a guerra para que sua previsão se cumpra, o que provavelmente ocorrerá pela disparidade de poder bélico e o cansaço do Ocidente, é preciso que vença porque o Ocidente está em decadência. E isso é bem mais difícil de verificar.

Para que as análises de Todd tivessem consistência científica, seria preciso intermediar entre os fenômenos que ele analisa e aquilo que ele identifica como as suas causas por teorias suficientemente testadas e preferencialmente consensuais. E isso ele não tem. Por isso, devemos ler esse livro mais como as reflexões de um homem inteligente sobre temas candentes do presente, levando em consideração os seus muitos pressupostos e as suas muito claras simpatias e antipatias político-ideológicas, do que como uma obra científica de um cientista desengajado rigorosamente assentada sobre fatos incontestes e teorias solidamente estabelecidas.

Em minha opinião, a inacreditável velocidade com que o Ocidente e suas periferias, como o Brasil, foram tomados pela avassaladora onda woke e o seu incontestável mergulho no niilismo mais abjeto são sinais inequívocos de decadência. A ausência de um sistema ético que forneça à Nação uma espécie de superego social, seja ele baseado em crença religiosa ou não, e o esfacelamento de um sentido mesmo de Nação que alimenta sonhos globalistas de uma governança global em mãos de grandes elites financeiras são, creio, também sinais de decadência. Os inimigos do Ocidente, a Rússia e a China entre eles, que não surfam essa onda, certamente se aproveitarão dessas fraquezas na inevitável disputa já em movimento por hegemonia.

Todd acredita que a decadência do Ocidente, basicamente EUA e seus “vassalos” europeus, explica tanto a sucessão de fatos que levou a essa guerra quanto o seu inevitável final, a vitória russa. Mas ele acredita também que, devido ao seu potencial “antropológico”, essencialmente a sua estrutura familiar, educacional e tecnológico, a Alemanha vai se sair bem no final, fortalecendo as suas relações com a Rússia, que segundo Todd tem os mesmos potenciais. A ver.

Jairo José da Silva é professor titular de matemática da UNESP e autor de "O que é e para que serve a matemática" (UNESP, 2023).

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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise

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